Com o domínio do Talibã no Afeganistão, veículos da imprensa ocidental revivem discurso sobre mulheres afegãs, colocando vestimentas tradicionais e religiosas como símbolo inegável de opressão
Por Fernanda Fonseca
A organização fundamentalista Talibã tomou, no dia 15 de agosto, a capital do Afeganistão, Cabul, após uma semana inteira de avanços em direção à cidade. Até o dia anterior, o grupo vinha conquistando províncias nos arredores da capital e, na manhã do dia 15, a conquista de Cabul se consolidou após o presidente do Afeganistão, Ashraf Ghani, deixar o país.
Com o desenrolar do domínio do Talibã no Afeganistão, os meios de comunicação reviveram o discurso que coloca as mulheres afegãs como impotentes e inerentemente oprimidas. Mas, além das questões geopolíticas e da série de direitos basilares em risco, a narrativa proposta pela mídia ocidental se ancorou principalmente nas vestimentas de mulheres afegãs, e mais especificamente as islâmicas, para ilustrar a opressão do fundamentalismo religioso. Ao trazê-las para os holofotes, os veículos da mídia ocidental instrumentalizam a opressão do Talibã contra as afegãs para tirar conclusões precipitadas sobre o islamismo e sobre a vivência dessas mulheres.
Durante este período de intenso discurso em torno do Afeganistão e das mulheres afegãs especificamente, é necessário entender a distinção entre grupos extremistas e a cultura afegã, se dissociando, assim, da retórica criada para proteger ideais imperialistas. Muitas dessas chamadas por liberdade feminina presentes na mídia mascaram um discurso guiado pelo feminismo branco que é ignorante em relação às nuances de religiões e culturas que divergem do que é considerado “ideal” e “certo” pelo ocidente.
Reduzir a vivência de mulheres muçulmanas e tentar impor uma retórica de salvação a partir de uma perspectiva ocidental acaba por generalizar questões que são mais complexas e próprias de certas comunidades. Assim, a mídia tem usado a imagem de mulheres afegãs para “iconizar” a opressão, reforçando o discurso que coloca a cultura ocidental como sinônimo de liberdade e tudo aquilo que diverge dela como automaticamente aprisionante:
As comparações feitas entre as roupas das afegãs na década de 1960 e a burca, que reforçam a ideia de que as mulheres que usam essa vestimenta são, em sua totalidade, oprimidas, não deveriam ser vistas como algo positivo. Esse tipo de paralelo que ecoou nos meios de comunicação após a tomada de Cabul pelo Talibã parte de uma análise simplista que presume que apenas vestimentas ocidentais são modernas e libertadoras, enquanto a burca e outras vestimentas tradicionais e religiosas são aprisionantes e retrógradas. Como exemplo, a Folha de São Paulo publicou em seu site e em suas redes sociais uma matéria intitulada: “Imagens mostram liberdade das mulheres no Afeganistão nos anos 1960”, na qual o texto destaca o uso de minissaias e a exposição de partes do corpo, como os braços. Ao invés de definir a liberdade das mulheres em termos de direitos sociais, políticos e econômicos, como educação, acesso à saúde e livre arbítrio, o que a mídia está fazendo é reduzir a liberdade à quantidade de pele que as roupas mostram ou deixam de mostrar. Sobre isso, é válido ressaltar que mulheres sempre são julgadas por conta de suas vestimentas, alterando-se apenas o contexto no qual as críticas são direcionadas. Dessa forma, tanto as roupas quanto o corpo feminino são colocados como objetos de análise e de controle social e político ao invés de serem vistos como algo que diz respeito apenas às mulheres, de acordo com suas vontades e convicções.
O fenômeno se repetiu em outros veículos de comunicação, como a capa da edição N* 2752 da Revista Veja, que trouxe a estátua da liberdade coberta com uma burca e os dizeres “Uma derrota da civilização”:
O que se torna perceptível é a objetificação das mulheres afegãs e suas vestimentas como ícones para discussões políticas ao invés de focar nas questões de direitos fundamentais básicos que estão sendo colocados em risco com o domínio do Talibã no país. Dessa forma, os sinais da falta de liberdade não deveriam estar nas vestimentas per si, mas na privação de direitos (como o próprio direito de escolha e livre arbítrio).
No trabalho intitulado “As mulheres muçulmanas precisam realmente de salvação?“, de 2012, a antropóloga e professora de ciências sociais Lila Abu-Lughod apresenta suas inquietações acerca dessas abordagens que se aproximam da islamofobia e do salvadorismo ocidental. Na obra, que foi escrita após a expulsão do grupo fundamentalista em 2001, Abu-Lughod demonstra seu incômodo perante a forma como as mulheres muçulmanas são frequentemente usadas como totem para representar a opressão do islamismo e reflete sobre o uso da burca e as análises generalistas vindas do ocidente:
“É necessária uma discussão acerca do véu, ou da burca, porque isso é muito central para as preocupações contemporâneas sobre as mulheres muçulmanas. […] É sabedoria popular comum que o sinal mais significativo da opressão das mulheres afegãs sob o regime do Talibã e dos terroristas é que elas são forçadas a vestir a burca. Os liberais às vezes confessam sua surpresa em relação ao fato de que, apesar de o Afeganistão ter sido liberado do Talibã, as mulheres parecem não estar jogando fora as suas burcas. Alguém que trabalhou em regiões muçulmanas deve perguntar por que isso é tão surpreendente. Esperávamos que, uma vez “livres” do Talibã, elas iriam “retornar” a camisetas curtas e jeans, ou tirar a poeira de seus trajes Chanel? Precisamos ser mais sensíveis sobre a vestimenta das mulheres cobertas”, diz Lila Abu-Lughod.
O que a autora defende em sua análise é que é possível se opor à imposição estatal de determinados tipos de vestimentas sem fazer uma interpretação simplista do véu ou da burca como símbolos da falta de liberdade das mulheres. Além disso, Lila Abu-Lughod afirma que “devemos tomar cuidado para não reduzir as diversas situações e atitudes de milhões de mulheres muçulmanas para uma única peça de roupa”, reconhecendo a possibilidade da diferença e deixando de lado as narrativas que reforçam uma ideia de superioridade por parte do ocidente. A partir disso, a mídia ocidental pode, então, se dedicar ao desenvolvimento de uma linguagem mais igualitária de solidariedade ao invés de uma linguagem de salvação baseada em análises reducionistas e que acabam por perpetuar preconceitos.
É válido ressaltar que, além da questão sobre a representação das afegãs pela mídia ocidental e o discurso simplista sobre suas vestimentas, o contexto de crise humanitária instaurado no Afeganistão requer o apoio internacional de governos, instituições e movimentos sociais preocupados com os direitos humanos e que as mulheres possam ser reconhecidas como agentes ativas na consolidação de suas pautas.