Dois podcasts entram em um bar…

Liberalismo mal lido é confundido com nazismo

Por Daniel Lustosa, Vitória Carmo, Luana Santos e Moises Mualem

Uma conversa de bar. Este formato de debate é como Bruno Aiub, conhecido como Monark, e Igor Coelho queriam que o Flow Podcast fosse visto. “Flow Podcast é uma conversa descontraída, longa e livre, como um papo de boteco entre amigos”, é a frase que aparece na página inicial do site do veículo. Inspirado no podcast do estadunidense Joe Rogan, o Joe Rogan Experience (JRE), Monark e Igor colecionam episódios polêmicos. Desde discurso pró-armamentista até a defesa de um partido nazista, o programa é material para a discussão: qual o limite da liberdade de manifestação do pensamento? 

“Eu sou mais louco que vocês” / O caos Monark

Em um dos programas diários do Flow Podcast, que só no Youtube possui mais de 400 milhões de visualizações, Monark,  até então apresentador e sócio do podcast, em uma conversa com os deputados federais Tabata Amaral (PSB) e Kim Kataguiri (DEM), defendeu que houvesse liberdade institucional para a criação de um partido nazista no Brasil. A fala ocorreu na madrugada do dia 07 de fevereiro e, ao amanhecer, a internet já havia reverberado e condenado o assunto, ao pedir esclarecimentos do programa, boicote das patrocinadoras e providências da justiça. O ex-apresentador, por sua vez, pediu desculpas e alegou que estava bêbado. 

Não foi a primeira vez que o influenciador se expressou de forma imprudente – em outubro de 2021, pela conta dele no Twitter, disparou algumas falas polêmicas, e em certo momento escreveu  “Opinião racista é crime?” ao tentar emplacar racismo, de forma infeliz, como “liberdade de expressão”. O acontecimento nas redes sociais repercutiu de forma negativa, o que levou a empresa Ifood a encerrar a parceria com o Flow Podcast, que, naquele momento, perdeu o principal patrocinador.

 O programa também perdeu patrocinadores devido às falas de cunho nazista do youtuber brasileiro, e, após isto ter se tornado público, a Flow Produção de Conteúdo Audiovisual Ltda., responsável pelo podcast, anunciou em nota o desligamento do Monark e a compra de sua parte da empresa (49,75%).

O caso Joe Rogan e o discurso antivacina

O Joe Rogan Experience é o maior podcast do mundo. Com cerca de 11 milhões de ouvintes por episódio, o programa é exclusivo do serviço de streaming Spotify, que ofereceu um contrato de mais de 100 milhões de dólares ao comediante e comentarista esportivo Joe Rogan em 2020. O podcaster é reconhecido por dar voz a comediantes de direita e personalidades libertárias, que, de vez em quando, soltam opiniões racistas e misóginas ao vivo.

No episódio que foi ao ar no dia 31 de dezembro de 2021, com o médico estadunidense antivacina Robert Malone, Rogan se encontrou em uma nova polêmica. Nele, o doutor descredibiliza as vacinas, dando declarações falsas, o que culminou numa carta aberta assinada por 270 cientistas dos Estados Unidos que criticaram o programa e pediram ações efetivas para o controle de disseminação de informações falsas. A carta traz informações relevantes, como a reincidência de episódios como esse, a média de idade do público do podcast e a faixa etária das pessoas internadas por covid-19 nos EUA. 

A situação tomou proporções maiores quando o músico Neil Young deu um ultimato ao Spotify: ou tirem as músicas dele do streaming, ou as desinformações do JRE. Daniel Ek, um dos fundadores e “chefão” do serviço de streaming, escolheu o podcast. No final de janeiro, uma compilação de comentários e ofensas racistas ditas por Joe Rogan em seu programa foi publicada pela cantora India Arie, no Instagram. 

“Mentiras sinceras me interessam”

Rogan, também pela rede social, soltou um pedido de desculpas, alegando que o conteúdo era antigo e que estava arrependido, apesar de ressaltar que os comentários foram feitos sob um contexto. Segundo o jornal The Hollywood Reporter, o comediante, em um show fechado, ironizou os críticos. “Eu falo merda para ganhar a vida – é por isso que é tão desconcertante para mim”, zombou. “Se você está aceitando conselhos sobre vacinas de mim, a culpa é realmente minha?”

A repercussão do caso Monark acabou sendo noticiada pelo jornal New York Times. Ao ser comparado com o Joe Rogan , Monark disse que irá iniciar um novo projeto, e contou um sonho: participar do podcast do estadunidense. “Seria uma tremenda honra falar com ele”, disse. Durante a entrevista, Monark pediu para que o jornal não dissesse que ele é nazista. 

Após diversas representações ao Ministério Público Federal (MPF), o procurador-geral da República, Augusto Aras, determinou abertura de uma investigação para averiguar uma possível prática de apologia ao nazismo. Monark demonstrou se sentir perseguido por, em sua visão, usar da liberdade de expressão. “Estou sendo destruído por defender uma ideia que é constitucional nos Estados Unidos”, afirmou Monark. Ele disse ainda que existe “um movimento político que acredita estar em patrulha para censurar todos que tenham um pensamento que possa parecer algo contra o qual são contra”, afirma. “É uma patrulha sem fronteiras.”

Monark tentou criar um novo canal no YouTube. No entanto, a empresa enviou um e-mail, compartilhado pelo podcaster em sua conta do Twitter, não permitindo a criação de um novo canal enquanto o atual , Monark, estiver com a monetização suspensa. Monark alega que está “sofrendo perseguição política” da plataforma..

A entrevista do Monark ao The New York Times, além dos comentários dele nas redes sociais, e o show de stand-up comedy do Joe Rogan são os melhores exemplos para provar que, na maioria dos casos, pedidos de desculpas feitos no calor do momento são uma resposta aos patrocinadores, em vez de serem para as pessoas que foram ofendidas. O deboche do estadunidense e a teimosia do youtuber brasileiro demonstram que não há arrependimentos; muito pelo contrário, eles acreditam que estão certos. “As pessoas perigosas de verdade são aquelas que acreditam que estão fazendo o que estão fazendo única e exclusivamente porque aquela é, sem a menor sombra de dúvida, a única coisa certa a se fazer. E é por isso que são tão perigosas”, diz Neil Gaiman em um de seus livros mais famosos, Deuses Americanos (Intrínseca, 2016). 

Discurso de ódio x Liberdade de expressão

O debate sobre liberdade de expressão ganhou muita visibilidade com o avanço do neoliberalismo no Brasil e de grupos que ganharam espaço para propagarem suas ideias na internet. Porém, no meio desse debate, os discursos de ódio também pegaram carona. De acordo com um levantamento feito pela antropóloga Adriana Dias, houve um crescimento de 270% de grupos neonazistas no Brasil (Fantástico, 16 de janeiro de 2022), sendo que as redes sociais são as principais ferramentas para o recrutamento de pessoas para esses grupos.

No Brasil, a lei federal 7.716/89 prevê prisão para quem comete discriminação contra os outros por causa de “raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”

Mesmo assim, com influência da cultura liberal norte-americana, há muitas pessoas que acreditam que opiniões que carregam discurso de ódio devem ser expostas para que possam ser combatidas, mesmo que essas opiniões questionem diretamente a existência de outras pessoas.

No caso do Monark, no Flow Podcast, vários convidados tentaram o avisar que esse discurso liberal poderia causar problemas, como no episódio 488, em que o ator e comediante Antonio Tabet diz: “Hoje em dia a tal liberdade de opinião ou expressão está sendo confundida com crime, apologia ao crime.”

Em 1945, o filósofo contemporâneo Karl Popper criou o “paradoxo da tolerância”, citado pela primeira vez em seu livro A Sociedade Aberta e Seus Inimigos (Edições 70, 2012). Para ele, ao aceitar os intolerantes, os tolerantes podem ser levados à destruição. “A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se entendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles”, escreveu Popper em seu livro.

Combater é a solução

A desinformação pode se espalhar como uma doença contagiosa, e por isso deve ser combatida. O Flow Podcast, assim como o The Joe Rogan Experience, é um programa multimídia, aberto aos mais variados públicos. Os apresentadores são muito mais que meros podcasters – são influenciadores – logo, são visados, ouvidos, patrocinados,  debatidos e levados em conta. Falas e posicionamentos incoerentes com a sociedade, declamados por personalidades em lugares estratégicos, precisam ser recebidos com indignação e repúdio, pois, quando esses comportamentos são ignorados, há o consentimento da abertura de um espaço para que a disseminação destes se espalhem. Confrontar é a solução. Afinal, podcasts devem ser feitos de conversas extrovertidas e descontraídas, e não de discussões que não cabem em nenhuma mesa – nem mesmo na de bar.

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