O “heroin chic” pode voltar?

Estética que pretendia ser uma alternativa à “perfeição” imposta nos anos 80 impacta diretamente na busca incessante pela magreza ainda hoje

Por Heloise Gonçalves e Débora Sobreira

Em setembro de 2019, Rihanna deu início ao especial anual de desfiles da sua marca de lingerie, Savage X Fenty, na New York Fashion Week. O impacto da celebração dos corpos plurais na passarela levou muitos veículos de mídia, inclusive da moda, a chamarem o desfile de “revolucionário”. As escolhas da estilista foram ovacionadas também nas redes sociais por pessoas que se viram — muitas delas, pela primeira vez — representadas nesse meio que lutou durante décadas pela exclusão de corpos fora do padrão.

Rihanna, ao centro, posa com os modelos do desfile de sua marca de lingerie

Estamos a três anos de distância deste grande marco impulsionado pelo movimento body positive, e a trinta da estética que impôs o padrão da extrema magreza, conhecido como “heroin chic”.

Heroin chic: quebrando alguns padrões e reforçando outros

O heroin chic se colocou, desde o início, como um choque à estética “perfeita” das revistas dos anos 1980, que até então só tinham espaço para modelos posadas e sorridentes, cenários montados e fotografias de estúdio. Foi com inspiração no movimento grunge que uma nova estética emergiu e se consagrou como contracultura na moda, sobretudo no Reino Unido e nos Estados Unidos, mas exportada mundo afora durante toda a década de 1990.

Por meio da mídia, essa estética criou força. Fotografias publicadas em revistas de moda, ineditamente, mostravam modelos com cabelos (lisos) desalinhados, a pele (branca) com olheiras, em ambientes não luxuosos e tampouco arrumados. Apesar da abertura para um retrato mais cru, real e imperfeito da realidade boêmia do mundo da moda, essa nova estética reforçava antigos padrões: todas as modelos eram brancas e magras. Muito magras. 

Jaime King fotografada por Davide Sorrenti

O fim do heroin chic se deu também nos anos 90, após a morte de um dos principais fotógrafos do movimento, Davide Sorrenti, napolitano que cresceu em Nova York, aos pouco mais de 20 anos de idade. A causa do falecimento foi decorrente do uso de heroína.

Davide Sorrenti, filho de Francesca Sorrenti e irmão de Mario Sorrenti, ambos fotógrafos, nunca se intitulou fotógrafo de moda, pelo contrário. A intenção de seus registros era documentar a juventude dos anos 1990 a partir, claro, do meio em que ele vivia. Seu ciclo social era formado por grandes nomes da moda, incluindo sua namorada, Jaime King. A fotografia de Davide caiu nas “graças” das revistas fashion, e então seu trabalho passou a ser glamourizado e capitalizado para… vender roupas.

Kate Moss, então, foi eleita como o padrão de beleza da década. E o heroin chic, que se opôs à estética homogênea vigente nos anos 80, tornou-se outro padrão.

A herança do heroin chic

Trinta anos após a rápida ascensão e decadência do heroin chic, um desfile com corpos diversos é motivo de comemoração. Isso porque, mesmo com uma duração breve, a estética da heroína repercute ainda hoje. A exaltação do corpo magro permanece, contraditoriamente, até nos tempos em que as irmãs Kardashian são nossa maior referência de beleza.

A barriga chapada e a cintura fina marcam o padrão de beleza atual, que recentemente, inclusive, passa a ter menos curvas. A própria Kim Kardashian, por exemplo, começou a diminuir suas medidas, em um visual artificialmente elaborado para parecer mais natural.

‘Tumblr culture” e os cyber efeitos da pressão estética

Com a popularização das redes sociais, tornou-se muito mais fácil expandir o alcance das influências da moda, bem como mais rápido ditar novas tendências. Mas, ao mesmo tempo, a internet se mostrava um meio — surpreendentemente — mais nocivo do que é hoje, com espaço mais do que suficiente para qualquer tipo de barbaridade gráfica e sem grandes ameaças de punições para os autores de tais conteúdos. 

Nessa “terra de ninguém”, era comum encontrar em redes sociais grupos dedicados a tratar de tópicos sensíveis sem qualquer tipo de fiscalização, como é o caso do Tumblr; e é nesse contexto que surge o que ficou conhecido como “pro-ana” e “pro-mia”, um efeito direto da pressão estética da época. Versões abreviadas dos termos “pró-anorexia” e “pró-bulimia”, as garotas por trás desses nomes não eram necessariamente pessoas com os transtornos alimentares mencionados; incluía também quem enxergasse essas condições como um estilo de vida. As referências as quais as adeptas se espelhavam não se faziam diferentes do apresentado pelo heroin chic – a magreza em primeiro lugar.

Via: https://pro-thinspiration.tumblr.com/

Ativas em fóruns e por meio dos próprios blogs, o movimento pro-ana/pro-mia, em seu auge, podia ser encontrado por meio de hashtags no próprio site. A dinâmica consistia em trocas de receitas, experiências e referências entre as garotas sobre quaisquer coisas que se relacionassem com o objetivo do emagrecimento rápido. Fazendo uso de imagens e frases de efeito tais como “homens não se apaixonam por garotas gordas”, o modus operandi dessa comunidade trabalhava em conjunto com o ideal inalcançável exposto pelas grandes mídias e marcas da moda e se baseava numa estética facilmente reconhecível e entranhável para quem já possuía a autoimagem fragilizada.

Com o avanço das discussões sobre saúde física e mental, e ao notar a ineficácia de suas medidas brandas, o Tumblr tentou tomar ação de forma a banir determinados termos e contas com conteúdo considerado suspeito; mas até hoje, com uma simples pesquisa no Google, é possível encontrar blogs da rede ainda ativos e compartilhando mensagens perigosas de emagrecimento a qualquer custo. O TikTok, campeão de popularidade atual, também apresenta dificuldade em banir esse tema por completo: resquícios do movimento ana-mia encontram brechas para continuarem aparecendo em vídeos rápidos e comentários assertivos.

‘Body positive’ e o futuro da moda

Por mais que ideias como a apresentada pelas pró-ana/mia ainda não tenham desaparecido por completo, o cenário que vemos nesta década parece demonstrar um maior interesse pela diversidade de corpos e estilos. O “body positivity”, ou “positividade corporal”, pode até ter adquirido mais força recentemente, mas sua história não começa por agora: o lema “meu corpo minhas regras” já invadia as ruas na década de 1960. A resposta dos consumidores também é clara: marcas com resistência à mudança não têm mais espaço, como foi o caso da empresa Victoria’s Secret que, desde o fim da década passada, enfrenta uma crise por insistir apenas em modelos PP.

As estéticas vigentes na década atual são compostas por muitas “reciclagens”; tendências como roupas em tons pastéis, saltos plataforma e presilhas coloridas encontram novamente as passarelas. Mas para além de vestimentas e acessórios, comportamentos nocivos relacionados à pressão estética também são revividos – apesar de perderem força graças a contragolpes de movimentos e representatividade, ainda proporcionam lucro para um sistema que não tem o bem-estar social como prioridade. Com isso, nos resta um olhar mais atento às formas de consumo e uma esperança por meio de uma geração que luta para ser cada vez mais diversificada.

Referências bibliográficas

https://www.smithsonianmag.com/smart-news/what-happened-to-self-harm-blogs-after-tumblr-banned-them-15883320/

https://salvationinthewild.tumblr.com/post/84826130059/feeding-the-pro-ana-mia-counter-culture-the-effect-of/amp

https://www.dazeddigital.com/science-tech/article/51361/1/pro-eating-disorder-content-is-still-rife-on-tiktok

https://www.dazeddigital.com/beauty/body/article/55414/1/bbls-are-over-eye-bags-are-in-smoking-is-back-is-heroin-chic-next

https://veja.abril.com.br/cultura/victorias-secret-e-as-empresas-que-nao-se-adaptaram-aos-novos-tempos/

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