Sexismo e política na guerra: o caso Mamãe Falei

Repercussão negativa do áudio demonstra que o discurso sexista tem consequências na vida pública

Por Pedro Sales

“Elas olham, e vou te dizer: são fáceis, porque elas são pobres”. Essa é a primeira frase dita por Arthur do Val em áudio vazado pelo portal Metrópoles, no dia 4 de março. Ao longo dos três extensos minutos, o deputado estadual, que era filiado ao Podemos de São Paulo, desfere comentários sexistas sobre as refugiadas ucranianas. O discurso não saiu impune. A repercussão da imprensa e das redes sociais foi imediata. As consequências chegaram à vida política e pessoal do parlamentar.

Arthur do Val, conhecido nas redes como “Mamãe Falei” — nome de seu canal no YouTube —, adquiriu relevância através de seus vídeos na plataforma. O conteúdo do canal se apoiava, sobretudo, em manifestações de alinhamento à esquerda. A tática utilizada pelo youtuber era se infiltrar em multidões e questionar a posição política dos manifestantes. A esperança de Arthur era que os participantes dos protestos reagissem agressivamente, pois dariam razão aos seus argumentos e os vídeos conseguiriam um bom engajamento.

A trajetória política do influencer teve início em 2018. Na ocasião, Arthur do Val se candidatou ao cargo de deputado estadual pelo Democratas e, com o apoio de Jair Bolsonaro, se sagrou o segundo deputado estadual mais bem votado em São Paulo, ficando atrás apenas de Janaína Paschoal (PSL). Ao todo, recebeu 478 mil votos. Já empossado, em 2019, Arthur recebeu visibilidade por renunciar aos benefícios parlamentares. No ano seguinte, Mamãe Falei ousou ocupar uma maior posição e se candidatou a prefeito de São Paulo, mas amargou sendo o quinto candidato mais votado. 

Um dos planos do deputado para 2022 era a sua candidatura a governador do estado de São Paulo, possibilidade varrida pela torrente de comentários sexistas de seu áudio vazado. Em 28 de fevereiro de 2022, Arthur do Val e Renan dos Santos, coordenador do Movimento Brasil Livre (MBL), viajaram à Ucrânia em meio ao conflito armado com a Rússia. O pretexto utilizado pela dupla era a “defesa da democracia”. Entretanto, em seu perfil no Instagram, o deputado compartilhou fotos nas quais ele ajudava o Exército ucraniano a produzir coquetéis Molotov.

O áudio

Quando o áudio do deputado estadual foi divulgado, Arthur do Val, que depois se desligou do Podemos, estava incomunicável. No voo, voltando para o Brasil, o parlamentar jamais imaginaria que a viagem à Ucrânia seria responsável pela sua ruína política. Nas redes, antes mesmo do vazamento do áudio, já existia polêmica acerca da viagem. Os apoiadores de Arthur aplaudiam o seu altruísmo em ajudar a causa ucraniana. Os opositores, por sua vez, afirmavam que a viagem do deputado era apenas uma manobra de promoção política. Promoção ou não, fato é que os resultados da viagem não foram positivos.

O conteúdo do áudio de Arthur, totalmente sexista e machista, foi um dos assuntos mais comentados no Twitter. O episódio figurou no segundo lugar dos trending topics mundiais da rede e colecionou uma onda de críticas. Entre os comentários do deputado, a associação entre vulnerabilidade econômica e intenção de flerte das refugiadas foi o que estampou as manchetes. Destacaram-se também a repetição do termo “deusas” para definir a beleza das ucranianas e a comparação entre a simpatia delas com as paulistas.

Segundo o áudio, o deputado estava na fronteira entre Ucrânia e Eslováquia. A fila que se formava com mais de 200 metros era composta, nas palavras de Arthur, apenas por “deusas”, mais bonitas do que as mulheres na “fila da melhor balada do Brasil”. Quanto à relação entre interesse e pobreza, ele afirmou que as ucranianas são gold diggers — termo em inglês para mulheres interesseiras —, e concluiu dizendo que “essas cidades mais pobres são as melhores”. Apesar de não ter “pegado” ninguém, do Val declarou que assim que chegasse à São Paulo, compraria nova passagem para o Leste Europeu.

Além desses comentários, Mamãe Falei expôs, sem querer, seu amigo Renan — o mesmo que viajou com ele. “O Renan faz uma viagem todo ano, ele chama Tour de Blonde. Ele viaja para os países só para ‘pegar’ loira”, relata Arthur. O deputado ainda completa dizendo que o colega possui experiência no assunto, as viagens ocorrem anualmente e, para facilitar a comunicação com as europeias, ele ainda fala sueco. Arthur sinaliza que o líder do MBL também o presenteou com alguns conselhos para esse tipo de viagem.

Turismo Sexual: um problema histórico

A relação entre pobreza e ”facilidade”, feita por Arthur do Val, é mais problemática do que parece. A vulnerabilidade econômica sendo explorada com fins sexuais é causadora de diversos danos à sociedade, os quais muitas vezes são invisibilizados e colocados debaixo dos panos. O Leste Europeu é uma região que sofre com o turismo sexual e, em casos mais extremos, com o tráfico sexual.

Desde a dissolução da União Soviética, em 1991, as ex-repúblicas soviéticas enfrentaram — algumas ainda enfrentam — severos problemas econômicos. A pobreza se alastrou à população e, em razão da fragilidade econômica, o tráfico sexual é explorado por máfias da região. Na Ucrânia, o problema reside principalmente no turismo sexual. Os turistas têm predileção pelo país tanto pelo biotipo das ucranianas, quanto pelos gastos, que são menores do que em outros locais. 

A comunidade ucraniana luta contra este estigma fortemente. Durante a Eurocopa de 2012, sediada na Ucrânia, o turismo sexual entrou em voga. Visitantes aproveitaram a ocasião para fins sexuais. A atitude de possíveis turistas sexuais foi rapidamente repreendida por torcedores ucranianos. Entretanto, o grupo mais bem articulado no combate ao turismo sexual é o feminista FEMEN. Entre outras pautas, o grupo defende abertamente o aborto e uma posição anticlerical, com críticas ao islamismo e ao cristianismo.  

No Brasil,  o turismo sexual não é uma realidade tão distante. Em 2019, o presidente Jair Bolsonaro (PL) afirmou que o Brasil não poderia ser conhecido mundialmente como paraíso gay, mas alegou: “quem quiser pode vir aqui e fazer sexo com uma mulher”. À parte do teor homofóbico do discurso, Bolsonaro reforçou a visão do Brasil enquanto destino para o turismo sexual. 

Da mesma forma que o deputado objetificou as mulheres ucranianas, a prática também acomete as brasileiras. A construção social da mulher brasileira como sensual e provocante é histórica. Durante o regime militar, a campanha estatal de turismo, feita pela Embratur (Empresa Brasileira de Turismo), criou no imaginário internacional a figura da brasileira como a mulher bronzeada e seminua na praia. Essa imagem resiste até os dias atuais: não é raro ver representações do Brasil que nos restringem à samba, Carnaval e mulheres bonitas. 

Propaganda da Embratur de 1983, com a legenda “Te vejo lá”. (Foto: Reprodução/Kelly Akemi Kajihara)

Consequências imediatas

O discurso de Arthur do Val saiu da esfera do grupo de amigos e tomou as redes sociais e manchetes dos principais jornais do país. Não demorou até a bomba explodir, cujos estilhaços também vitimaram a reputação de Renan dos Santos, fundador do MBL. Ao chegar da Ucrânia, ainda no aeroporto, um grupo de jornalistas esperava pelo parlamentar, no anseio de conseguir respostas e justificativas do áudio.

As consequências foram imediatas e surgiram bem antes do deputado tomar ciência do vazamento. A namorada de Arthur, Giulia Blagitz, anunciou o rompimento com ele através de publicação em seu Instagram. O Podemos, o partido político de Mamãe Falei, instaurou um processo disciplinar contra ele. Por fim, Sérgio Moro, pré-candidato à presidência pelo mesmo partido, declarou que não dividiria palanque com alguém que cultiva tais opiniões. Além de deixar o partido, Val desistiu de sua pré-candidatura ao governo de São Paulo. 

Antes de passar pela sabatina dos jornalistas, Arthur ligou para a companheira da Alesp Isa Penna (Psol-SP) para saber o quão comprometida estava a sua imagem. Não precisou, entretanto, da análise da parlamentar: no celular já havia recebido milhares de mensagens que evidenciaram a gravidade do áudio. A repercussão negativa se estendeu internacionalmente e jornais como o britânico The Guardian noticiaram a polêmica sexista. A Representação Central Ucraniano-Brasileira, entidade que recebeu doação do MBL, também repudiou o ato e defende a cassação do parlamentar.

Para lidar com a exposição de seu sexismo e misoginia, Mamãe Falei optou pelo controle de danos. O deputado retirou sua pré-candidatura ao governo paulista, tentando desesperadamente preservar a imagem do partido e a sua própria. Acompanhado disso, postou em seu canal do Youtube um habitual vídeo de pedido de desculpas — recurso comum em polêmicas na internet. Ao justificar o teor do áudio, o parlamentar afirmou que exagerou como “um grupo de amigos do futebol fazem”.

O discurso de Arthur do Val demonstra, mais uma vez, a fragilidade do conservadorismo moral brasileiro. Em pele de cordeiro, ele se revela um predador. A dita missão altruísta em defesa da Ucrânia foi maculada pelos comentários lascivos do parlamentar. Como disse Nelson Rodrigues uma vez, “atrás de todo paladino da moral, vive um canalha”. A constatação do cronista e dramaturgo torna-se cada vez mais tangível com os escândalos que permeiam a política brasileira.

Os comentários sexistas de Arthur conseguiram um feito improvável: unir direita e esquerda. Independente das diferenças ideológicas dos grupos, figuras dos dois espectros políticos declararam repúdio às palavras do deputado, demonstrando, assim, uma resistência ao discurso machista — ao menos nas notas oficiais. Atualmente, existe uma mobilização em torno da cassação do mandato do deputado. Esse processo conta com o apoio tanto de membros da esquerda quanto da direita. Caso seja aprovado, Arthur terá seu mandato suspenso, será impedido de assumir cargo público e ficará inelegível pelo período de oito anos.

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