Os limites da representatividade

“Turning Red”, novo filme da Pixar, traz temas importantes sobre amadurecimento, mas estreia em meio a polêmicas sobre representatividade em filmes de animação

Texto por Débora e Fernanda

Desde a estreia de Divertidamente, em 2015, o estúdio de animação Pixar vem mostrando uma nova orientação para seus filmes: ainda mantendo o tom fantasioso, eles parecem agora mais focados em trazer ao público uma maior identificação com as narrativas, invocando dramas comuns a diferentes faixas etárias. É nesse cenário que se dá, em março de 2022, a estreia de Turning Red (“Red: Crescer é uma fera”), primeiro longa do estúdio dirigido por uma mulher e com uma equipe de produção inteiramente feminina.

Domee Shi, a diretora em questão, ficou conhecida por seu trabalho em Bao, curta-metragem lançado em 2018 pelo mesmo estúdio e vencedor de um Oscar; também participou da produção de Divertidamente, reciclando muitas de suas ideias não aprovadas pelo diretor em seu novo filme. Em sua mais recente produção, a cineasta compartilha um pouco de sua realidade enquanto mulher chinesa inserida num contexto ocidental. Com traços autobiográficos e uma estilização artística muito diferente do anteriormente apresentado pelo estúdio, ‘Red’ nos traz um elenco majoritariamente feminino e racialmente diverso, criando grandes expectativas para o futuro das animações da empresa – mas, infelizmente, o filme não ficou imune ao pensamento conservador que se faz presente por parte da audiência.

Quando o diverso incomoda

A ótima recepção do filme pelo público e crítica especializada – 73% e 95%, respectivamente, no portal Rotten Tomatoes – não isolou a animação de polêmicas e comentários preconceituosos. Nas últimas semanas, foi possível observar uma onda de indignação, principalmente de homens, com o fator central da narrativa: a trama vivida pela protagonista Meilin, ao se transformar em um panda vermelho gigante, é uma metáfora bem explícita (inclusive diretamente referenciada no filme) ao ato de menstruar. 

Comentários como “este filme não é para todo mundo” e “como vou explicar isso ao meu filho?” se fizeram presentes em diversas redes sociais. Mesmo após animações do estúdio já terem tratado de temáticas de fato maduras (mas igualmente necessárias), como ‘Up: Altas aventuras’, ‘Coco’ e ‘Soul’, que possuem a morte como foco, Turning Red foi o escolhido para sofrer as consequências ao trazer um tema importante para o público – inclusive vivenciado por grande parte dele. Uma das mais notáveis críticas foi a feita por Sean O’Connell, jornalista e diretor do site Cinema Blend, que afirmou não conseguir “se conectar à história” por se tratar de uma narrativa centrada em famílias asiáticas. 

‘Red’ talvez incomode tanto justamente por não florear o que pretende trazer: o filme se propõe a trabalhar a mistificação da menstruação e retrata o tema de forma clara, mostrando remédios e absorventes enquanto a mãe da protagonista inicia uma conversa sobre o assunto. A trama também busca dialogar com a realidade de imigrantes asiáticos, ressaltando traços culturais importantes para essas comunidades que se encontram inseridas em um contexto ocidental. Além disso, o filme também traz experiências comuns à infância: ambientada no início dos anos 2000, a produção reflete a vivência de quem participou de fã-clubes dedicados a boybands (de Backstreet Boys a One Direction) e escrevia secretamente histórias de seus personagens favoritos. 

Censura de histórias LGBTQIA+ 

Mas a representatividade em ‘Red’ acabou sendo parcialmente ofuscada por uma polêmica envolvendo a Disney e que foi revelada na mesma semana de lançamento do filme. A empresa que comprou, em 2006, o estúdio de animação Pixar, fundado por Steve Jobs, foi acusada por funcionários de censurar cenas, personagens e histórias LGBTQIA+ em suas produções e apoiar projetos de lei que visam desestimular e até mesmo proibir, debates sobre sexualidade em escolas dos Estados Unidos. 

A polêmica começou no dia 3 de março, quando foi exposto que o conglomerado midiático estaria fazendo doações a políticos que são favoráveis a um projeto de lei LGBTQIAfóbico nos EUA. O projeto apelidado por ativistas como “Don’t Say Gay” (“Não diga Gay”) circula no estado norte-americano da Flórida e tem como objetivo proibir, nas escolas, “a discussão em sala de aula sobre orientação sexual ou identidade de gênero” (Lei SB 1834 Parental Rights in Education). Além disso, a lei também garante que pais possam processar escolas ou professores que abordem temas sobre sexualidade e que qualquer professor que “identifique” alunos como LGBTQIA+ deve imediatamente comunicar aos pais ou responsáveis. 

Na segunda-feira (07/03), Bob Chapek, CEO da Disney, se pronunciou sobre o posicionamento da empresa em relação à legislação anti-LGBTQIA+ proposta na Flórida: por meio de um memorando interno para os funcionários, Chapek chegou a dizer que a companhia possui um “compromisso inabalável com a comunidade LGBTQIA+” e que o “maior impacto” que a Disney poderia causar “na criação de um mundo mais inclusivo é através do conteúdo inspirador que produzimos”. 

O pronunciamento de Bob Chapek veio seguido de uma resposta imediata dos “funcionários LGBTQIA+ da Pixar e seus aliados”, que afirmaram, através de uma carta coletiva, a existência de censura de conteúdo LGBTQIA+ por parte da empresa. Na declaração, que foi divulgada pelo site da revista Variety, os funcionários do estúdio de animação alegaram que os executivos da Disney exigiram cortes de “quase todos os momentos de afeto abertamente gay… independentemente dos protestos das equipes criativas e da liderança executiva da Pixar”. De acordo com a carta, a afirmação de Chapek sobre a criação de um “mundo mais inclusivo” por meio de filmes não condiz com a realidade enfrentada pelas equipes que trabalham no estúdio de animação: “Nós da Pixar testemunhamos pessoalmente belas histórias, cheia de personagens diversos, retornarem das revisões de executivos da Disney reduzidas e migalhas do que eram originalmente. (…) Mesmo que a criação de conteúdo LGBTQIA+ fosse a resposta para reverter leis discriminatórias no mundo todo, nós estamos sendo impedidos de criá-los”.

A primeira personagem abertamente LGBT em um longa da Disney veio apenas em 2020, com a policial Specter em “Dois Irmãos – Uma Jornada Fantástica”. A sexualidade da personagem é mencionada durante um encontro com os protagonistas, no qual ela comenta, casualmente, sobre o filho de sua namorada.

Avanços e retrocessos 

No dia 18 de março, a revista Variety divulgou outra reportagem exclusiva expondo que, após a polêmica, diretores executivos da Disney decidiram restaurar uma cena de beijo entre duas mulheres que já havia sido cortada do filme Lightyear, próximo lançamento da Pixar previsto para 2022. Entrevistados pertencentes à equipe criativa do filme relataram que a nova animação apresenta uma personagem feminina significativa e que está em um relacionamento com outra mulher. Segundo as fontes consultadas pela revista, embora a natureza desse relacionamento não tenha sido questionada, todas as demonstrações de afeto entre as personagens foram inicialmente censuradas da produção. 

Além da personagem Specter no filme “Dois Irmãos”, que aparece em algumas cenas e faz menção à sua sexualidade, nos 27 anos de história da Pixar personagens LGBTQIA+ foram reduzidos à posição de figurantes, postura esta que foi intensificada com a aquisição do estúdio de animação pela Disney. Em Turning Red, por exemplo, um casal gay é visto de relance andando de mãos dadas em uma cena do filme. Após a polêmica sobre censura, internautas repercutiram a existência da cena com sarcasmo: 

Mesmo que ‘Red’ demonstre um inegável avanço em filmes de animação, tratando de temas como puberdade e dando protagonismo a personagens não-brancas, o fato é que a Disney ainda tem muito a avançar no que se refere à representatividade em suas produções. Além do apoio a projetos de lei LGBTQIAfóbicos que representam um perigo real à juventude LGBT+ dos EUA, limitar a presença de personagens lésbicas, gays, bissexuais, trans, etc, em filmes infantojuvenis nega representatividade a uma comunidade que existe também na infância e adolescência. 

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