MULHERES À MARGEM DA CIÊNCIA

Maternidade é usada como critério para baixa produtividade em bolsas pelo CNPq, evidenciando desigualdade de gênero na ciência. Mídia pode promover transformação social ao dar visibilidade ao assunto

Por Júlia Giusti

No fim de dezembro do ano passado, a pesquisadora e cientista social da Universidade Federal do ABC (UFABC) Maria Carlotto trouxe a público a recusa de sua bolsa de produtividade pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em razão de sua maternidade. Esse auxílio é concedido como bônus a pesquisadores que se destacam em sua área de atuação. Segundo o parecer do Conselho, “provavelmente suas gestações [de Carlotto] atrapalharam” a realização de um pós-doutorado no exterior, e isso “poderá ser compensado no futuro”. O caso repercutiu amplamente na mídia, denunciando a desigualdade de gênero, em especial, na pesquisa e na ciência. 

Foto: Reprodução/ X.

No dia seguinte à exposição, 27 de dezembro, o CNPq publicou nota em que reconheceu a decisão como inadequada e preconceituosa e informou que tomaria providências. Porém, caso semelhante ocorreu na mesma época. Como Carlotto, a professora Cibele Russo, do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade de São Paulo (USP), também teve bolsa de produtividade negada por se tornar mãe. A decisão mencionava que as licenças-maternidade tiradas no período avaliado explicariam o “pequeno número de alunos formados” pela professora. “Acredito que com os dois filhos já maiores [Russo] irá focar no aumento da sua produção científica e formação de alunos de mestrado e doutorado”, completava o parecer. O documento foi emitido em 22 de dezembro de 2023, mas só ganhou repercussão midiática em janeiro deste ano.

Ao buscar o nome das duas pesquisadoras no Google, o navegador remete a vários portais de notícias denunciando a conduta do CNPq. O caso de Russo ocorreu antes do de Carlotto, mas o noticiamento foi consideravelmente maior no segundo, pela exposição nas redes sociais dela. Isso mostra o alcance e a velocidade com que uma informação se espalha no meio digital. Em janeiro, a negativa da bolsa de Carlotto foi notícia em portais como Folha de S.Paulo, g1, UOL, Metrópoles e Terra. Outros jornais, como Estadão e Correio Braziliense, deram maior enfoque nas medidas adotadas pelo órgão de bolsas após a repercussão negativa. 

Quando comparado ao caso da cientista social, o de Cibele foi pouco noticiado, sendo mostrado, principalmente, pela Folha. Apesar desse fato, a exposição dos dois casos na mídia denuncia a realidade de exclusão das mulheres na ciência, contribuindo para a reversão desse cenário. A postura dos jornais não só expõe a incoerência presente nas decisões do CNPq, mas também instiga o pensamento crítico dos leitores, com análises do ocorrido e busca por outras fontes de dados adicionais, além de ouvir, das próprias pesquisadoras, sua versão dos fatos. 

Mulheres no mundo científico

A história de Cibele Russo foi contada no episódio “Maternidade e misoginia na pesquisa e na ciência” do podcast Café da Manhã, da Folha de S.Paulo. Ele teve participação da jornalista Victoria Damasceno, editora da iniciativa Todas, que amplia conteúdo para mulheres. A decisão por retratar o assunto no podcast é notável. A série diária da Folha tem o costume de chamar atenção para aspectos de relevância social e se destaca como meio de denúncia da realidade, pilares do jornalismo. Somado a isso, a produção transmitida no Spotify tem um alcance muito grande, atingindo a marca de 100 milhões de reproduções em março deste ano. Assim, a retratação da história de Russo e dos aspectos envolvidos traz a pauta das mulheres na ciência à público e promove mudança por meio da visibilidade ao caso.

Para a pesquisadora da USP, a desigualdade de gênero na pesquisa se manifesta com enfoque sobre a vida pessoal das pesquisadoras mães. “Para outros pesquisadores, é a baixa quantidade ou qualidade de artigos ou de orientações ou qualidade do projeto. Mas para as mulheres que são mães, a questão da maternidade sempre aparece”, disse Cibele.

A realidade exposta por ela reforça a posição das mulheres à margem da construção do conhecimento. Nos casos citados, a maternidade se torna mais um empecilho para o destaque feminino na pesquisa. Levantamento do Parent in Science, movimento que busca igualdade na ciência para mães e pais, mostrou que mulheres são menos de 36% dos bolsistas de produtividade do CNPq em 20 anos (2004 – julho de 2023). As áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática (STEM) tiveram o menor número de mulheres bolsistas. 

Fonte: Parent in Science/Folha de S.Paulo.

É interessante observar que a participação feminina na ciência diminui, proporcionalmente, à elevação das posições na academia. Segundo a Academia Brasileira de Ciências (ABC), as mulheres são maioria das cientistas no Brasil, mas poucas chegam às posições mais altas, como se percebe no levantamento do Parent in Science

De acordo com a oficial de programas da Unesco no Brasil, Mariana Braga, a desigualdade de gênero afeta a oferta de uma educação de qualidade e de oportunidades de carreira para mulheres. “A sub-representação de mulheres em posições de liderança e referência em STEM contribui para a falta de modelos a seguir. Elas ainda enfrentam desigualdade no acesso a oportunidades educacionais e profissionais em STEM. Barreiras socioeconômicas, estereótipos de gênero e discriminação continuam a limitar o acesso e a progressão na carreira”, expõe, em entrevista ao Correio

Ambientes hostis e falta de apoio a mulheres cientistas, combinados à lacuna de políticas públicas, também explicam a sub-representação feminina na pesquisa. No texto “Onde as cientistas não têm vez”, da Revista Fapesp, a professora de física Márcia Barbosa, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), afirma que “as mulheres ainda são consideradas desprovidas das habilidades tidas como necessárias para a produção de conhecimento científico”.

A reportagem “Ciência, substantivo feminino”, publicada no Correio Braziliense em março deste ano, conta as trajetórias de três mulheres cientistas que se destacam em suas áreas, enfrentando, com garra, os desafios no caminho. Cecília Favali, professora no Departamento de Biologia Celular da Universidade de Brasília (UnB) e mãe de duas crianças, disse que já sofreu preconceito no trabalho por ser mulher, mas isso não a impediu de progredir na carreira. “Alguns homens ainda agem como se as mulheres estivessem ali para servi-los. Nós, mulheres, sempre ficamos com a parte mais difícil depois que os filhos nascem, mas eu nunca deixei de correr atrás e de evoluir”, relatou. Essa reportagem é mais um meio pelo qual percebe-se o jornalismo como 4° poder na sociedade, destacando um tema de urgente discussão e mostrando que é possível ser cientista e mãe. Outro fato notável nessa cobertura é a aproximação com a personagem, que pode inspirar outras mulheres em situação semelhante.

A conselheira da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) Lúcia Melo defende que a força de trabalho nas carreiras de ciência, tecnologia e inovação seja ampliada com o emprego de mais mulheres nesses postos: “A gente tem um contingente feminino importante ou crescente em áreas científicas, mas o emprego das mulheres na pesquisa e no desenvolvimento das empresas ainda é pequeno”. Para ela, é fundamental criar condições para atraí-las para os campos científicos, “respeitando a trajetória feminina dentro do seu papel na sociedade”.  

Providências

Após a repercussão negativa do caso de Maria Carlotto, em 6 de janeiro, o CNPq publicou nota em que determinou criação de grupo de trabalho para elaborar um Código de Ética. O Conselho também tornou obrigatória, a partir de março, extensão de dois anos por gestação do período avaliado para bolsas de produtividade. Antes da decisão, a inclusão da maternidade como critério cabia ao comitê de cada área. 

As medidas do CNPq são avanços em políticas de equidade para pesquisadoras mães, mas não resolvem o problema, visto que a queda de publicações entre elas pode durar até quatro anos após o nascimento ou adoção do primeiro filho, de acordo com o Parent in Science. Mais do que as providências anunciadas pelo órgão que concede subsídios, são necessárias políticas públicas de fomento à ciência e à pesquisa e de inserção das mulheres nessas áreas. 

Questão importante consiste na destinação de verbas para ciência e tecnologia. É válido destacar que os recursos para essas áreas no governo de Jair Bolsonaro (PL), entre 2018 e 2022, sofreram drásticas reduções, com corte de 87% dos recursos em 2021 e retirada de R$1,2 bilhão do Fundo Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) em 2022. Sob o slogan “A ciência voltou”, Lula (PT) liberou mais de R$4 bilhões ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação em 2023, mas houve diminuição do orçamento daquele ano para 2024.

Comparado a outros países, o Brasil investe pouco em ciência e tecnologia, o que afeta diretamente a pesquisa no país. Entre os membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne 38 das economias mais avançadas do mundo, a média de formação de doutores é de 1%. No Brasil, o índice é cinco vezes menor, apenas 0,2%. “Quando nós olhamos para os países desenvolvidos, não é à toa que eles têm maior número percentual de doutores. Esses países geram e exportam alta tecnologia através das pesquisas”, explica a presidente da Capes, Denise de Carvalho. Para ela, o Brasil deve investir nos seus profissionais para garantir o desenvolvimento do país frente a outras economias: “A formação de mais doutores é fundamental para o desenvolvimento industrial do país”.

Outra questão importante remete à oferta de financiamentos pelo CNPq e aos critérios utilizados na seleção de bolsistas pelo órgão. Como dito no podcast da Folha, a baixa quantidade de bolsas de produtividade ofertadas e critérios de avaliação desiguais entre gêneros dificultam a valorização do trabalho de cientistas mulheres. Por isso, não bastam políticas de equivalência do número de homens e mulheres na pesquisa, mas deve-se pensar na equidade de oportunidades e condições entre os grupos. Isso é fundamental no combate ao cenário de privação das mulheres de espaços de poder, seja na academia, seja na sociedade. 

“É a partir da conscientização, da divulgação e da compreensão da pesquisa feita com mulheres e por mulheres que outras meninas podem, sim, fazer escolha pela carreira de cientista. Ciência precisa ser inclusiva, a ciência é para todos aqueles que tenham interesse em aprendê-la”, defende Erondina de Lima, coordenadora do projeto Eureka! Meninas na Física, da Universidade de Brasília (UnB), que busca estimular a participação de estudantes da educação básica na ciência.

Essa responsabilidade recai sobre todos os setores, envolvendo governo, instituições promotoras da pesquisa, sociedade civil, jornalismo e empresas, como aponta a diretora de marketing da empresa de tecnologia MineMiners, Danielle Almeida. “Como mulher e mãe, acredito que, para combater o machismo enraizado na sociedade, é essencial uma abordagem multifacetada que inclua educação, conscientização e ação concreta nas escolas e nas instituições públicas e privadas. A responsabilidade de promover um país melhor e mais equânime para as mães recai sobre todos, incluindo empresas e marcas”, afirma.

A cobertura midiática do assunto é também essencial para dar visibilidade à pauta. O noticiamento foi ético ao ouvir as pesquisadoras e retratar os fatos de forma correta, chamando atenção para uma realidade que se estende para além das decisões do CNPq. Quanto mais se fala em determinado assunto, mais isso atinge as pessoas. Logo, a ampla cobertura tende a promover transformação social, seja pelo incômodo da repetição, seja pela identificação com as narrativas.

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