DOM QUIXOTE DE LA MANCHA, D. XICOTE DE LA MARCA

Após autorização de publicidade de livros em TV aberta, intelectuais franceses se veem afrontados. Como se manifesta o embate entre publicidade e literatura? 

Por Lorena Rosa

No dia 5 de abril de 2024, a França enfrentou uma atribulação, que parece ter enervado até o descanso mórbido de Gustave Flaubert (autor de Madame Bovary). O incômodo veio à tona a partir de um decreto assinado pelo governo francês, que libera a publicidade de livros em canais de televisão nacionais, públicos e privados, antes restrita a emissoras a cabo, desde 2000. Em entrevista exclusiva ao jornal O Povo, o delegado geral do Sindicato das Livrarias Francesas (SFL), Guillaume Husson, contestou: “Se um leitor descobre um best-seller graças a uma publicidade na TV, só comprará ele. E continuará sendo um leitor ocasional”.

A verdade é que a ponte que interliga esse eixo da comunicação à literatura indispõe a uma proximidade com o universo simbólico da arte, pelo contexto mercadológico de um e pela sugestiva dimensão transcendental humana do outro. 

O poeta e publicitário brasileiro Manoel Bastos Tigre (1882-1957), mais conhecido como D. Xicote, por exemplo, engajou o Rio de Janeiro com textos circundados de ironia para comercializar sua produção. Chegou a fundar organizações de apoio aos direitos dos escritores e se candidatou à Academia Brasileira de Letras. Porém, se firmou precisamente no mercado de anúncios, em 1913, quando abriu a própria agência. Você já deve ter ouvido por aí o slogan “Se é Bayer, é bom”, um dos criativos de Bastos Tigre para a indústria farmacêutica alemã. 

Embora a publicidade acate um discurso denotativo para promover a comercialização em suas mensagens, é possível articular as duas linguagens como recurso estilístico e expressar ideias em tom persuasivo.

João Anzanello Carrascoza, escritor e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), agrupa narrativas em 11 textos ensaísticos que intercalam referências de autores renomados do universo literário, como Franz Kafka (A metamorfose), Lydia Davis (The end of history) e Fernando Pessoa (Livro do desassossego), para retratar gêneros e estratégias da publicidade associados a textos ficcionais, no intuito de estudá-la por meio da retextualização.

A técnica se utiliza da aproximação de textos de domínios aparentemente opostos, mas que se habilitam, em conjunto, para relacionar fenômenos; neste caso, redimensiona a linguagem da prática mercadológica a novos significados. 

Capa do livro “De Macondo à terra de Marlboro” – Editora Unesp, 2023.

Atualmente, as marcas enfrentam uma remodelagem dos valores de consumo por seus produtos e serviços, que se induz ao intimismo intrínseco a determinada compra, prezando pela experiência satisfatória e utilitária que o objeto de consumo tende a proporcionar.

O poder de compra vem sendo realocado em alternativas menos apelativas, mediadas por gastos conscientes, direcionado a performances éticas e comportamento interpessoal entre marcas e consumidores.

No artigo “Consumo e imagem: o simbólico e a materialidade”, publicado em 2018 na Revista Científica Semana Acadêmica, Mayko Oliveira de Lima aponta uma significação para o termo “consumo”, expondo sua ligação com a esfera simbólica da linguagem publicitária. “Os objetos podem ser utilizados para compreensão da sociedade ou de uma determinada cultura, pois carregam significados que denotam como eles são extensões das práticas sociais. Sendo assim, objetos são escolhidos porque representam um determinado sentido, e não são meros veículos para portarem significações construídas na subjetividade do indivíduo”, afirma Mayko.

A publicidade usufrui de instrumentos estilísticos originários da literatura para gerar efeitos atrativos, como as figuras retóricas (metáfora, polissíndeto, hipérbole etc.), que exercem grande influência, a princípio, na redação publicitária. Dessa forma, é possível estreitar ainda mais o contato da marca com o indivíduo.

Em estimativa global, cerca de 61% da população cultivam experiências de consumo mais reais e espontâneas, segundo pesquisa do CX Trends, em 2023, dirigida pela Zendesk. O dado representa avaliação com mais de 100 mil clientes que utilizam os serviços da empresa em todo o mundo.

“A busca pelo pertencimento a uma determinada imagem apresenta-se como mais relevante do que a própria busca pela materialidade, cabe à promoção dos produtos a construção e entrega desse imaginário de status e satisfação pessoal”, explica Mayko Oliveira.

Embora haja divergências permeando os dois mundos, literatura e publicidade partilham código comum, o imaginário. Numa fonte, se experienciam novos contextos a partir da suposição de histórias, e na outra, se extrai realidade idealizada com personagens e elementos mágicos.

Decerto que a inquietação causada pela iniciativa do governo francês em publicizar livros na televisão supera o fato de exibir o produto à massa social e ilustra a relação conflituosa entre a validação do que é arte ou charlatanismo. A fissura existencial entre publicidade e literatura se prolonga, embora eu me atenha à ideia – em ambos os casos – de que sempre procuramos algo para suprir ambições e urgências. Nós, humanos, meio caçadores de recompensas (sejam reais ou não). 

Fonte: Blog Charges Genildo, postado em 09/10/2018. Cada um lê aquilo que quer ou que lhe interessa!

http://www.genildo.com/2018/10/literatura.html

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