SHOW DE MADONNA E CHUVAS NO RIO GRANDE DO SUL

Quando dois grandes acontecimentos ocorrem ao mesmo tempo, critérios de noticiabilidade do jornalismo entram em xeque

Por Júlia Lopes e Júlia Giusti

O show da cantora Madonna ocorreu no dia 4 de maio, atraindo uma multidão estimada em cerca de 1,6 milhão de pessoas na área de Copacabana, no Rio de Janeiro. Esse evento já estava previsto há alguns meses, quando foi anunciado pelo Banco Itaú que a rainha do pop faria um show gratuito no Brasil, como encerramento de sua turnê The Celebration Tour, em comemoração aos 40 anos de carreira. O evento foi financiado majoritariamente pelo governo do Rio e pela iniciativa privada.

      Imagem: Reprodução/Riotur

Enquanto a mídia se preparava para cobrir o espetáculo, simultaneamente, o Rio Grande do Sul era atingido por chuvas intensas, desde 27 de abril. Com o passar dos dias, o cenário se agravou, com 80% das cidades alagadas, entre elas, a capital Porto Alegre e, mais de dois milhões de indivíduos afetados, entre mortos, desaparecidos e desabrigados. A situação foi reconhecida pelo Congresso Nacional como estado de calamidade pública, até 31 de dezembro deste ano, o que implica que recursos empregados nas ações de recuperação do estado não entram no teto de gastos.                                                                                                           

Imagem de drone mostra alagamento na cidade de Canoas (RS). Voluntários procuram por   moradores ilhados. Imagem: Reuters/Amanda Perobelli

A rede Globo transmitiu ao vivo o show de Madonna, por quase quatro horas, das 21h35 à 1h13. A audiência chegou a 22 pontos em São Paulo e 28 no Rio de Janeiro. Na capital fluminense, foi a maior marca registrada pela emissora nessa faixa horária de sábado nos últimos seis anos, desde abril de 2018. Na internet, é possível encontrar diversos comentários criticando a mídia por dar mais destaque ao show do que ao desastre natural que atingiu o RS.

Reprodução: X/Twitter

No jornalismo, algumas teorias, como a newsmaking, explicam como os eventos se transformam em notícias no mundo midiático, de que maneira e por que esses fatos ganham status de notícia, em uma construção social da realidade. No caso do show de Madonna, a presença de uma artista internacional realizando evento gratuito no país, normalmente, atrairia mais atenção, por se tratar de algo incomum e, também, pelo símbolo de defesa da liberdade e diversidade que a cantora representa. Assim, a cobertura sobre o show é válida e tem sua importância. Entretanto, há um conflito de enfoques envolvendo o evento e a crise vivida no RS.

Os critérios de noticiabilidade, compostos por valores-notícia, são conceitos subjetivos que fazem parte da teoria jornalística. Eles são utilizados pelos editores de qualquer meio de comunicação para avaliar as informações recebidas e decidir o que será veiculado. Por exemplo, a presença de Madonna no Brasil é considerada uma novidade, pois envolve um evento que ocorre pela primeira ou última vez, tornando-o noticiável. Já as chuvas no Rio Grande do Sul são relevantes devido ao impacto significativo que têm na vida das pessoas, o que aumenta sua visibilidade como notícia. É importante ressaltar que, em nenhum momento, a mídia deixou de cobrir o que está acontecendo no Rio Grande do Sul, fazendo, inclusive, ampla cobertura do caso. No entanto, é possível observar que algumas notícias se destacam mais do que outras, até mesmo para o público que as consome. Mostrar o que acontece nas cidades gaúchas é dever dos jornalistas, conforme previsto no Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, que define a obrigação de “divulgar os fatos e as informações de interesse público”. Com isso, ao analisar a capa dos três maiores jornais impressos do Brasil – O Globo, Estadão e Folha de S.Paulo – na edição do dia 5 de maio, domingo, logo após o show, é possível observar que Madonna foi manchete em todos eles, enquanto as enchentes no Rio Grande do Sul foram notas no final da capa, sem grande destaque.

Imagens: Reprodução/O Globo/Estadão/Folha de S.Paulo.

O Fantástico, na edição de 5 de maio, dedicou mais tempo à cobertura do show da cantora do que a reportagens sobre o que acontecia no estado gaúcho. De suas 2h38 de conteúdo, o programa falou sobre a tragédia por 25 minutos. As pautas dedicadas à Madonna ocuparam mais espaço na transmissão, com 33 minutos no ar. A decisão gerou críticas à direção da emissora, que deu menos enfoque na cobertura dos alagamentos, em comparação com outros veículos. Outro aspecto criticado foi o encerramento do Jornal Nacional do dia 4 de maio, que terminou com os apresentadores Hélder Duarte e Ana Paula Araújo rindo, depois de uma reportagem sobre Madonna.

Após a repercussão negativa, houve mudanças na cobertura da Globo. Na semana seguinte ao show, todas as atenções se voltaram para a situação das enchentes. Grandes nomes do jornalismo, como a própria Ana Paula Araújo e William Bonner, foram enviados ao Rio Grande do Sul para comandar as edições do Bom Dia Brasil e do Jornal Nacional (JN), diretamente do local. Patrícia Poeta também conduziu o Encontro no estado. O JN foi exibido de Canoas (RS), uma das cidades mais atingidas pelas chuvas, com William Bonner ao vivo, sendo possível ver o resgate de pessoas ao fundo. Com seriedade e sensibilidade, ele e a equipe retrataram a gravidade da situação, de forma ética e sem sensacionalismo. Outras emissoras também enviaram repórteres especiais para o local, como o jornalista Roberto Cabrini, da Record.

William Bonner apresentando o Jornal Nacional de Canoas, RS. Imagem: Reprodução:TV Globo/ RBS

Responsabilidade

Quando dois assuntos de grande relevância social se encontram, os meios de comunicação se veem em uma “sinuca de bico”, na qual o desafio para os jornalistas e editores é encontrar um equilíbrio entre o interesse público imediato e a importância de informar sobre eventos que afetam diretamente a vida das pessoas em determinadas regiões. Nessa situação, noções de interesse público, ou seja, questões de relevância social, e do público, desejos de consumo da audiência, se confundem, traçando uma linha tênue que compromete o papel do jornalismo e o exercício da cidadania. Os desastres climáticos causam vítimas e ocorrem periodicamente há muitos anos, tanto aqui no Brasil quanto no mundo. Por exemplo, em 2023, o Rio Grande do Sul foi atingido por um ciclone extratropical. Nessas situações, os transbordamentos dos rios e os desmoronamentos nas regiões costeiras resultam em mortes, desaparecimentos, desalojamento e perdas irreparáveis, especialmente para a população de baixa renda. Ocorre, também, o risco de essas pessoas ficarem suscetíveis a doenças, devido à sujeira trazida pelas enchentes e à falta de água potável, entre outros fatores. Com isso, é importante uma cobertura imediata, sendo fundamental revelar detalhes, entrevistar as vítimas e especialistas de forma ética.

Cria-se um ciclo vicioso entre mídia e sociedade. A primeira forma a opinião pública seguindo critérios de noticiabilidade, mas sem deixar de se preocupar com o interesse das pessoas, afinal, jornalismo e público possuem relação intrínseca. Ao mesmo tempo, o show atrai maior audiência do que a cobertura sobre os alagamentos, revelando preferências dos espectadores. De acordo com a teoria do agendamento, de McCombs e Donald L. Shaw, os consumidores de notícias acreditam que os assuntos mais importantes são os veiculados pela mídia, assim, ao acompanhar uma cobertura que prioriza falar de Madonna acima dos desastres no RS, o público tende a dar mais importância a um fato sobre outro.

Nesse caso, a responsabilidade é de ambos os lados. A mídia não deve deixar de se pautar pelos cidadãos que atende, porém, deve diferenciar os interesses público e do público, priorizando o noticiamento dos fatos de maior valor social, como determina o Código de Ética da profissão. Essa atitude é, também, uma forma de cobrar do poder público a adoção de medidas de combate à calamidade vivida no Rio Grande do Sul. Os espectadores devem utilizar seu pensamento crítico para decidir sobre os fatos que merecem destaque, não apenas exigindo da mídia a escolha pelos conteúdos.

Em relação ao poder público, é comum que autoridades se preocupem com catástrofes ambientais somente após os eventos virem à tona. De acordo com a Associação Contas Abertas, que monitora gastos do governo federal para prevenção de desastres naturais desde 2010, o investimento em ações para evitar essas tragédias caiu de 2013 a 2021, de R$3,4 bilhões para R$1,1 bilhão. Segundo o jornalista Diego Amorim, host do blog Bloco de Notas,do Correio Braziliense, governos falam em “orçamento de guerra” em situações de calamidade pública, em vez de manter plano de ação contínuo de combate a desastres ambientais. Assim, existe uma ética coletiva no enfrentamento às catástrofes, na qual mídia, sociedade e governo têm diferentes papéis em meio à tragédia.

Fake news

No dia 5 de maio, o governo desmentiu uma informação falsa de que o show da Madonna, no Rio de Janeiro, teria sido patrocinado com dinheiro do governo federal. Essa notícia falsa é perigosa, pelo conflito de interesses, polarização política e prioridades da pasta, que marcariam um descaso com a sociedade e políticas públicas. O ministro da Secretaria de Comunicação Social (Secom) da Presidência da República, Paulo Pimenta, publicou um vídeo em que desmentiu as informações e ressaltou os impactos negativos que as fake news têm na sociedade.

Estou perplexo com a quantidade de mentiras, fake news e desinformação e com os vídeos que estão circulando, tentando criar narrativa mentirosa de uma ligação do show da Madonna com a tragédia no Rio Grande do Sul. Eu não consigo entender como num momento como esse, em que estamos trabalhando para salvar vidas, tem gente que se dedica a produzir mentiras.” Afirmou, Paulo Pimenta.

Link do vídeo:  MADONNA NÃO RECEBEU DINHEIRO DO GOVERNO FEDERAL!

Reprodução: Folha de S.Paulo/ Autora: Laerte/ 9.maio.2024                  Correio Braziliense/ Autor: Kleber Sales/ 12.maio.2024 

Outra informação falsa que foi muito divulgada na mídia foi que Madonna teria doado R$10 milhões, de forma anônima, ao governo do estado do Rio Grande do Sul para ajudar na recuperação da tragédia. O valor representa mais da metade do cachê da cantora, que foi de R$17 milhões. Entretanto, o governo do estado não confirmou o recebimento da doação, e a artista também não se pronunciou. O ocorrido mostra, mais uma vez, como citou Paulo Pimenta, a tentativa de criar uma narrativa que liga o show às tragédias no RS.

Por uma cobertura consciente

Ao lidar com temas sensíveis, é essencial fazer uma cobertura consciente, ética e humanitária. A situação vivida no Rio Grande do Sul coloca à prova a capacidade do jornalismo de agir de forma responsável no noticiamento de tragédias. É preciso tratar o assunto com seriedade, ouvir as pessoas, levantar os diversos aspectos envolvidos, fazer apurações precisas e divulgar corretamente as informações.

A agência de checagem de notícias Lupa, por exemplo, está atuando em peso no combate à disseminação de fake news relacionadas às enchentes no RS, resgatando a confiabilidade no jornalismo. Os conteúdos falsos atrapalham o trabalho das autoridades na contenção da crise e geram pânico, revolta e desconfiança na população, agravando, ainda mais, o cenário complexo no estado gaúcho.

Imagens: Reprodução/ Instagram @agencia_lupa

É fundamental reforçar o papel do jornalismo local nessa cobertura. Veículos de notícias são responsáveis não só pela divulgação de informações oficiais e confiáveis, mas também atuam junto aos indivíduos afetados, auxiliando em resgates e orientando sobre como agir. No dia 10 de maio, a startup gaúcha de mídia Alright fez a liveA cobertura jornalística em desastres ambientais”, reunindo uma rede de veículos locais, como o portal O Correio, Portal Gaz, Diário de Santa Maria, Rádio Viva e Rádio Terra FM. Domingos Secco, fundador da Alright, destaca a importância da cobertura local: “O microfone, a câmera e as redes sociais são o bote salva-vidas da população”.

Para muitos moradores que ficaram sem acesso à internet devido às chuvas, a comunicação radiofônica foi essencial, mantendo constante diálogo com a população e buscando providências junto às autoridades. Para Daniel Heck, diretor da Rádio Terra FM, as rádios atuam como “ponto de esperança das famílias”. José Renato Ribeiro, diretor do O Correio, expõe que a proximidade com a comunidade se sobressai, que “só encontra o que precisa saber nos veículos locais”. Fabiana Sparremberger, diretora do Diário de Santa Maria, conclui que o jornalismo local vai além do simples informar e é capaz de transformar realidades: “Muito além do jornalismo, é uma missão de vida”.

A mídia tem sido consciente na cobertura dos alagamentos, ressaltando dados oficiais, atuando no combate a informações falsas, repercutindo a necessidade de apoio coletivo com doações e acompanhando, de perto, o drama vivido por mais de dois milhões de pessoas. Apesar de escorregar quando dois fatos de interesse público se cruzaram, o jornalismo não deixa de lado seu papel fundamental de construção da realidade e de denúncia, bases da profissão. Diante da desinformação, conflito de interesses e outras dificuldades em meio à tragédia, como disse Rosana Hermann, colunista da Folha, “ignore os idiotas e ajude o Rio Grande do Sul”.

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