ESPETACULARIZAÇÃO DO ABSURDO

Caso “Tio Paulo” expõe sensacionalismo na imprensa e insensatez nas redes sociais

Por João Pedro Alves e Maria Eduarda Oliveira 

“Tio Paulo, tá ouvindo? O senhor precisa assinar”. No mês de abril, o vídeo que apresenta esse diálogo ocupou o noticiário e figurou entre os assuntos mais comentados das redes sociais. O fato, em 16 de abril, envolve Érika de Souza, mulher de 42 anos que levou o tio, Paulo Roberto Braga, para retirar dinheiro de empréstimo solicitado dias antes. Nas imagens, o idoso, em uma cadeira de rodas, não reage aos comandos da sobrinha. Funcionárias da agência chamam, então, socorro médico. O homem estava morto.

A cobertura pela imprensa brasileira, a repercussão internacional do episódio e as reações nas redes sociais, muitas delas repletas de piadas e memes, levantam questionamentos a respeito do tratamento dado pela mídia em casos que desafiam a lógica, carregam complexidades e se aproximam do absurdo. 

Fantástico (21 de abril)

Qual é a história completa? A reportagem se pergunta, de início. Ao escapar da simplificação das matérias televisivas e dos sites de notícias, o Fantástico acrescenta imagens, pessoas e espaços ao caso. Esses elementos conferem outra dimensão ao fato do dia 16 de abril, quando o idoso foi levado ao banco pela sobrinha, cena que marcou o país.

O telejornal de domingo da Globo mostra, por novos ângulos, Paulo Roberto Braga na agência antes de ser levado ao caixa de atendimento. Erika de Souza sustenta a cabeça do tio, que cai sem apoio. Minutos depois, vê-se a tentativa de assinatura, vídeo que se espalhou na imprensa e nas redes. O material apurado pelo Fantástico adiciona cenas da ajuda dos funcionários e da chegada da equipe médica.  

Esses momentos não são triviais. Além de ampliar o panorama da questão, as novas imagens deixam de lado a abordagem reducionista, que explorou a gravação em que Erika de Souza solicita a assinatura do tio. Sites de notícia escreveram, de maneira sensacionalista, para atrair cliques, como: Mulher leva cadáver para sacar R$17 mil em banco, no Rio. Vídeo e VÍDEO Caso TIO PAULO MORTO: Mulher pegou empréstimo no banco? Veja tudo. 

Se, nesse aspecto, a matéria do Fantástico se afasta da armadilha do sensacionalismo, ao visitar a casa de Paulo Roberto, a equipe de reportagem comete equívoco. A ideia de trazer à cena o espaço habitado por Erika de Souza, tio e família pode ter relação com a justificativa para o empréstimo: reformar o ambiente em que moravam. Contudo, a reportagem se excede quando entra no quarto de Paulo, mostra a parte de dentro do guarda-roupas e invade a privacidade de alguém que não pode mais consentir essas ações. 

Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros prevê como dever do jornalista respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do cidadão, conforme artigo 6º, parágrafo oitavo. Foi desnecessária tamanha aproximação com os pertences da vítima para construir matéria exibida. Visão geral da casa e explicação dos planos de reforma com o empréstimo cumpririam propósito de exibir o lar da família sem que houvesse exposição. 

12h52. Câmeras de segurança do estacionamento registram chegada de carro prata com Erika e Paulo. O motorista ajuda o idoso a descer e o coloca na cadeira de rodas. O médico legista Fernando Esbérard afirmou ao Fantástico que, nesse momento, é possível perceber sinais vitais de Paulo Roberto. Nelson Massini, perito criminal, discorda da análise e diz que não foram identificadas provas de vida em nenhuma parte das imagens, desde a chegada. Erika e o tio circulam pelo Shopping em Bangu, Zona Oeste do Rio de Janeiro, e param, inclusive, para lanchar. Às 14h02, os dois entram na agência bancária.

Da discordância entre especialistas, extrai-se a complexidade do caso. Não se chegou à conclusão do horário da morte de Paulo Roberto. Tampouco houve julgamento de Erika de Souza, presa preventivamente e indiciada por tentativa de furto mediante fraude e vilipêndio de cadáver. A família, na reportagem, pediu sensibilidade das pessoas. A advogada de defesa fez alerta parecido: Erika não pode ser punida antes de ser julgada. 

Fantástico entrevista Érika de Souza (5 de maio)

Presa em flagrante em 16 de abril, dia do incidente na agência, Érika de Souza deixou o Instituto Penal Djanira Dolores de Oliveira, na Zona Oeste do Rio, 16 dias depois. Na mesma semana, deu a primeira declaração à equipe do Fantástico, exibida dia 5 de maio. Nota-se abatimento e estado de choque em entrevista que termina com afirmação contundente de Érika: “Eu não sou esse monstro”.

Ponto central em todo o episódio foi a repercussão midiática e alta mobilização das pessoas em relação ao tema. A juíza Luciana Mocco, em decisão que derrubou a prisão preventiva, reforçou que “clamor público não é requisito previsto em lei para decretação ou manutenção de prisão”.

“Eu não sou esse monstro”, encerrou Érika, em lágrimas. Pode ter sido a primeira vez que muitas pessoas puderam considerar a hipótese de que ela pode não ter se dado conta da morte do tio, como afirma, e que, portanto, ela pode não ser culpada. Afinal, todos possuem direito à defesa. 

Repercussão nas redes 

As redes sociais, no entanto, montaram seu próprio tribunal. Em meio a vários termos de pesquisa, o caso se tornou um dos assuntos mais comentados no X (antigo Twitter), com exposição do cadáver em vídeo e memes que vão de fantasia de carnaval de tio e sobrinha, a bonecos decorativos de Paulo Roberto na cadeira de rodas. Os usuários da plataforma, além de encararem a situação como grande piada, debateram sobre as intenções de Érika e a condenaram. “Num guento essas reportagens que dão palco pro culpado. É espaço para a sobrinha do tio Paulo, do assassino do Porsche…”, comentou um internauta.

Reprodução: X/Twitter.

Apesar do tom de ridicularização da notícia no X, os danos causados pela compilação de memes são diversos, incluindo o vilipêndio a cadáver e corroboração com a falta de ética. Mesmo que internautas considerarem-no “ terra sem lei” e se sintam seguros para compartilhar o que quiserem, protegidos atrás da tela, o aplicativo sob domínio de Elon Musk tem em suas diretrizes de uso, em relação a pessoas falecidas: “De acordo com esta política, podemos solicitar que você remova imagens ou vídeos produzidos no momento exato, imediatamente antes ou depois da morte de uma pessoa se recebermos uma solicitação de sua família ou de um representante autorizado.”  

Cabe ressaltar que em relação à representação de Paulo Roberto Braga, alguns veículos de imprensa profissionais tiveram cuidado de preservar o rosto do idoso. A Agência Lupa, empresa jornalística de combate à desinformação, por exemplo, além de prezar pela imagem do cadáver, fez post educativo no qual pede para “perceber até que ponto um meme pode ser utilizado para fazer rir e refletir ou apenas zombar da dignidade alheia”. 

Reprodução/ Instagram.

Entretanto, filmagens originais viralizaram na web,  sem edição ou uso de borrões. Possível explicação para este fenômeno, no livro Comunicação do Grotesco, Muniz Sodré, jornalista e sociólogo, analisa como a comunicação pode, por vezes, se estruturar em torno do grotesco, de modo a espetacularizar assuntos e captar interesse. A curiosidade é atraída pelo insólito.

Nas redes, foram vistas ainda piadas de mau gosto na tentativa de ganhar visibilidade a partir da dimensão alcançada pelo caso. Uma loja de carros, por exemplo, criou peça publicitária em vídeo com situação inspirada no caso “Tio Paulo”. Dois funcionários da loja fingem ser tio e sobrinha, que, na tentativa de comprar um carro, pede a assinatura dele, mas não obtém resposta.

Outras coberturas 

Na mesma velocidade em que os memes se alastraram, veículos de comunicação internacionais apressaram-se para noticiar o assunto. Ao contrário de muitas matérias brasileiras, com apelo para “ VEJA O VÍDEO”  ou captura de tela que exibe o cadáver de Paulo como capa, as agências Sky News e Reuters  em momento algum utilizaram imagens dos envolvidos para relatar o ocorrido. A primeira trouxe carro de polícia no Rio de Janeiro como ilustração, a outra optou por não colocar recurso visual. Na política interna de ambas, é reprovada a promoção de sensacionalismo e qualquer comportamento que interfira na dignidade de vítimas e seus familiares. A Reuters ainda assegura que “evita dores e ofensas desnecessárias”. 

Outros jornais, como Clarín e The Washington Post, nomes com grande audiência na Argentina e Estados Unidos, respectivamente, decidiram colocar o vídeo viralizado em suas matérias, com as devidas precauções. Enquanto o Clarín colocou aviso de “imagens sensíveis” e borrões das cenas, The Washington Post usou vídeo censurado produzido pelo G1, o que evidencia postura exemplar do veículo de notícias brasileiro. 

Apesar das manchetes escandalosas em busca de visualização, o veículo online de notícias Metrópoles, envolvido anteriormente em polêmicas por exposição de imagem desnecessária e conduta ética questionável, não vinculou imagens que não estivessem com o borrão de censura. Claro, isso não impediu o portal de destacar o vídeo em mais de cinco notícias diferentes, nem de continuar a caça a cliques com alertas de outros casos em que cadáveres foram levados a banco, também com destaque para o recurso audiovisual. 

O caso “Tio Paulo” oferece reflexões para o trabalho da imprensa, que, diante de situações extremamente incomuns, que flertam com ruptura lógica, deve escapar ao modo simplista de apresentar fatos. Garantir multiplicidade de fatores para melhor descrever situações é fundamental. A espetacularização e a comunicação pelo grotesco (que despertam grande interesse), deve-se frisar, caem com facilidade no campo do antiético. Respeito à honra é pressuposto da atuação profissional. 

As redes sociais, ambiente composto por regras — que carecem de atualização, é verdade —, conseguem elevar alcance de assuntos para o bem e para o mal. Possuem linguagem particular e consolidada, os memes, mas quando estes passam do ponto e infringem direitos, compete às plataformas retirar conteúdo ilegal e, às autoridades, aplicar sanções previstas.

Deixe um comentário