Lula 3 e presença feminina controversa

Mesmo com avanços no terceiro mandato do presidente, baixa participação de mulheres na Esplanada, STF e Congresso evidencia permanência de sub-representação feminina na política 

Por Júlia Giusti

O primeiro ano do terceiro mandato do presidente Lula (PT) foi marcado pela sub-representação feminina na política, mesmo com avanços. Seu governo já contou com a maior porcentagem de mulheres à frente de ministérios desde a redemocratização, em 1985, com 30% de ministras, ou seja, 11 no total de 37 representantes. No entanto, ao final de 2023, esse percentual caiu para 24%, com as demissões de Daniela Carneiro, do Turismo, em julho, e de Ana Moser, do Esporte, em setembro. Esse índice foi o mesmo atingido no governo Dilma Rousseff (PT), à época da posse de seu primeiro mandato, iniciado em 2011. Lula também se reuniu menos com ministras do que homens no comando de ministérios. 

Em novembro do ano passado, o presidente indicou Flávio Dino, então ministro da Justiça, para a vaga de Rosa Weber no Supremo Tribunal Federal (STF), reduzindo a representação feminina na corte a 9%. Com a decisão, a ministra Cármen Lúcia é a única mulher entre os onze integrantes do tribunal. No Congresso Nacional, as mulheres são cerca de 18% na Câmara e no Senado. Apesar do baixo índice, houve aumento da presença feminina nas duas Casas após as eleições de 2022. 

A série de decisões do presidente repercutiram amplamente na mídia, em vários portais de notícias, como Folha de S.Paulo, O Globo, CNN, Estadão, Metrópoles e Poder 360. Os conteúdos produzidos se preocupam em retratar os fatos pelo grande alcance dos temas políticos, além da importância dada à figura de Lula, conforme critérios de noticiabilidade, que decidem o que é relevante ou não na prática jornalística. Apesar desses fatores, a crítica social, mesmo que implícita, se faz presente no texto dos portais, se aproximando do dever ético dos jornalistas. Assim, ao dar voz à pauta de gênero na política, a mídia repercute uma visão atenta sobre o tema, reforçando a permanência da sub-representação feminina nessa área, predominantemente masculina.

Encontros, demissões e avanços  

A desigualdade de gênero na Esplanada é evidente não só pelo número de mulheres à frente de ministérios, mas também pela diferença entre a quantidade de reuniões do governo com ministros e ministras. A discrepância na agenda de Lula foi evidenciada pelo Metrópoles e pela Folha de S.Paulo. Segundo levantamentos dos portais, 86% dos encontros foram com homens, enquanto apenas 14% foram com mulheres. Entre os dez ministros com quem o presidente mais se reuniu, todos são homens. 

                                                      Fonte: Reprodução/ Folha de S.Paulo

Entre as mulheres, a ministra Esther Dweck, da Gestão, foi a que mais teve encontros com o chefe do Executivo, 22. Esse número está muito longe da quantidade de reuniões com Padilha, o primeiro na lista, e é menor do que os encontros com os dez ministros homens mais vistos. Luciana Santos, da Ciência, aparece em último lugar, com somente duas reuniões, contrariando o slogan do governo “a ciência voltou”.

Fonte: Reprodução/ Folha de S.Paulo

As reportagens feitas a partir dos dados consolidados destacam prioridades políticas acima de preocupações com pautas de gênero e de minorias, na contramão do discurso de Lula para o terceiro mandato. Sonia Guajajara, Cida Gonçalves e Anielle Franco também estão entre as ministras que menos se reuniram com o presidente. Assim, pautas de minorias vêm sendo deixadas de lado pelo governo, que priorizou aprovação do plano econômico de Fernando Haddad. 

Além disso, com minoria de aliados no Congresso, a substituição de Daniela Carneiro e de Ana Moser por candidatos do centrão ocorre com interesses de garantir maior estabilidade política. A saída da ex-representante do esporte, principalmente, causou grandes críticas na mídia, que deu enfoque sobre os aspectos envolvidos na demissão e suas implicações, com destaque sobre o posicionamento de Ana Moser e de entidades do esporte. 

Ela disse à CNN Brasil que a decisão foi política, um “abandono do esporte”. Em nota, o Ministério considera que houve interrupção de uma política pública no esporte. “Esta gestão vê com tristeza e consternação a interrupção temporária de uma política pública de esporte inclusiva, democrática e igualitária”, declara o parecer. Moser também destacou, em entrevista com a Folha, que há um desequilíbrio de gênero nas diversas esferas sociais: “É fato, não tem como negar: o poder é masculino, o esporte é masculino, o Judiciário é masculino, o parlamento é masculino”. Entidades, como a ONG Atletas pelo Brasil e o coletivo Esportes pela Democracia, manifestaram oposição à demissão e apoio à ex-ministra.

Apesar desse histórico, houve crescimento expressivo na participação feminina na Esplanada no governo Lula 3, em comparação com o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). No início do mandato deste, mulheres ocupavam dois dos 22 ministérios, percentual de 9%. Ao final de sua gestão, o cenário se agravou: a ministra Cristiane Rodrigues Britto, do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, foi a única em meio às 23 pastas. Nesse período, a presença feminina na Esplanada foi de, aproximadamente, 4%. Nota-se que a representatividade de gênero não era prioridade da agenda de Bolsonaro. 

Indicação 

Lula sofreu pressão de aliados e da sociedade civil para indicar uma mulher negra para o Supremo Tribunal Federal no lugar de Rosa Weber, que deixou o cargo em setembro do ano passado. Naquele mês, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) publicou carta defendendo essa posição. “É inegável a importância de uma representação diversa nas cortes superiores do país, de forma a refletir a diversidade existente na nossa sociedade”, afirma o documento. Em mais de 130 anos de atuação, o STF nunca teve uma mulher negra integrando o quadro. 

Entretanto, o presidente logo informou que a indicação não seguiria critérios de gênero ou raça. Em novembro, ele indicou Flávio Dino, então ministro da Justiça, para a vaga de Rosa Weber, reforçando a composição masculina do Tribunal. O mesmo ocorreu com a escolha de Cristiano Zanin, advogado de Lula nos processos da Lava Jato, para a cadeira do então ministro do STF Ricardo Lewandowski, que se aposentou em maio de 2023.

Em meio à cobertura midiática do governo no ano passado, esse foi mais um aspecto com ampla repercussão. A professora e coordenadora do grupo de pesquisa Supremo em Pauta, Eloísa de Almeida, publicou na Folha de S.Paulo que, com a decisão, Lula adere a um “clubinho de rapazes”, reforçando sub-representação feminina não só no Judiciário, mas também nos outros poderes, “sempre na iminência de perderem seus cargos para qualquer acomodação política – de um homem, a pedido de outro homem”. Para ela, ter um colegiado essencialmente masculino no STF mostra a indiferença sobre a participação de mulheres em decisões.

Weber, ministra desde 2011, foi uma das únicas mulheres a compor a Corte, além de Ellen Gracie (2000 – 2011) e Cármen Lúcia (2006 – atual), todas brancas. Após a decisão, a representação feminina no Tribunal é a segunda pior da América Latina, ficando atrás somente da Argentina, que não possui ministras no cargo. 

                                              Fonte: Reprodução/ Folha de S.Paulo

Tanto a escolha por Zanin quanto por Dino demonstram a prioridade de Lula de se cercar de pessoas com quem possui relações próximas, ignorando compromisso com a igualdade de gênero e de raça, enfatizado em seu discurso de posse. Como disse o professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e, também, coordenador do Supremo em Pauta, Rubens Glezer, o recado que fica é: “Se o momento político e econômico não está favorável, se esquece os deveres da inclusão”. 

Presença no Legislativo

Nas últimas eleições, o Senado consolidou número recorde de parlamentares mulheres, com 15 representantes. Entretanto, a quantidade representa apenas 18% do total de 81 cadeiras. Mesmo assim, a porcentagem de eleitas em 2022 (15%) é, proporcionalmente, maior do que em 2018 (13%). É importante lembrar que as vagas para o Senado variam a cada eleição, devido ao sistema de rodízio

Na Câmara, o percentual se repete, com 91 deputadas em meio a 513 vagas (18%). Em 2018, a proporção foi de 15%, com 77 parlamentares mulheres. Entre elas, há duas trans, fato inédito no Congresso. É válido destacar que existe cota mínima de 30% de candidaturas femininas nas eleições proporcionais. Outras ações afirmativas garantem 30% dos recursos do fundo eleitoral para candidatas e 30% do horário eleitoral de rádio e TV.    

Fonte: Reprodução/ Estadão

Ainda com crescimento da presença feminina no Legislativo, o Brasil se mantém bem abaixo da média mundial. Segundo a União Interparlamentar (UIP), organização que reúne 193 países, a média é de 26,4%. No ranking mundial, o Brasil ocupa a 146° posição. Na América Latina, Cuba e México têm melhores desempenhos, com 53,4% e 50% dos assentos ocupados por parlamentares mulheres, respectivamente. 

Em cenário brasileiro, elas também seguem sub-representadas em cargos de liderança no Congresso. De acordo com levantamento da CNN, mulheres ocupam somente 5,5% das lideranças partidárias na Câmara. No Senado, são quase o dobro: 10,5%, mas o índice ainda é muito baixo. 

Memória, discurso e mensagem

Ao analisar a baixa participação feminina na política hoje, percebe-se que se trata de reflexo da conquista tardia de direitos políticos das mulheres, como o sufrágio. No Brasil, o voto feminino foi alcançado apenas com o Código Eleitoral de 1932, porém, só se tornou obrigatório na Constituição de 1934. Ressoam, também, efeitos de discursos machistas e excludentes construídos historicamente, como “lugar de mulher é em casa” e “homem é provedor do lar”. Isso afeta não só o âmbito da política, mas provoca desigualdade de gênero em várias outras esferas sociais, como ciência e trabalho.

Em 2017, por exemplo, em discurso de comemoração ao Dia Internacional das Mulheres, 8 de março, o então presidente, Michel Temer, afirmou que a sociedade “vai bem” quando os filhos têm adequada formação em casa, o que “seguramente, quem faz não é o homem, mas a mulher”. A declaração foi amplamente criticada na mídia, repercutindo até na imprensa internacional.

Embora perceba-se avanços na questão de gênero na política, desafios persistem. No último ano, a presença feminina ganhou destaque na Esplanada e no Congresso, mas os números mostram que ainda há muito a ser feito. A série de decisões de Lula mencionadas, como as demissões de ministras e a indicação para o STF, mostram que, apesar do discurso em defesa das minorias, seu governo se pauta em vieses políticos. Com isso, fica a mensagem de que tudo vale para garantir boa governabilidade, mesmo atitudes incompatíveis com princípios de inclusão. 

Tanto no Executivo quanto no Judiciário e no Legislativo, as abordagens no primeiro ano do terceiro mandato de Lula se revelaram como cenário propício ao noticiamento crítico pela mídia, preocupada em levantar controvérsias na agenda política e de inclusão do presidente, se valendo sempre da boa apuração dos fatos. Dessa forma, o jornalismo contribui para a mudança social ao repercutir uma pauta que ultrapassa o simples informar, mas envolve análise de diversos aspectos para compreensão da realidade, dando visibilidade a questões de interesse público e seguindo princípios éticos da profissão.

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