Em nome da “liberdade”, meios desinformam em Santa Catarina

*Por Rogério Christofoletti

A pandemia da covid-19 tem produzido estatísticas aterradoras, cenários dramáticos e grandes acrobacias discursivas. Governos se esforçam para nublar sua incapacidade de evitar mortes, e autoridades justificam porque não precisam usar máscaras em lugares públicos, como mandam os decretos. Não bastassem mais de 105 mil mortes no país e uma quantidade incontável de sofrimento, estamos também sob forte bombardeio de informações falsas, duvidosas ou simplesmente falaciosas. Em Santa Catarina, por exemplo, há veículos de imprensa que, sob o pretexto de defender liberdades, estão contribuindo com a epidemia de desinformação. É o caso do Grupo ND, que levantou a bandeira da “liberdade de tratamento”.

Em um polêmico editorial em seu jornal impresso, reproduzido também no portal de notícias e na emissora de TV (retransmissora da Rede Record), o Grupo ND vociferou que não era mais possível “aceitar a tutela do Estado” no combate à doença, e que cabia a doentes e médicos decidirem a melhor cura. O desprezo às recomendações de autoridades sanitárias internacionais veio no meio de julho, justamente o momento em que Santa Catarina começou a flexibilizar suas medidas de biossegurança. Foi quando o governador lavou as mãos, repassando a responsabilidade aos prefeitos. O relaxamento fez os números de casos e mortos triplicarem em semanas, ao mesmo tempo em que um prefeito de formação médica propalava o uso de cloroquina, ivermectina e até aplicações retais de ozônio.

Sob o pretexto de defender uma liberdade, a de se tratar, o conglomerado simplesmente renunciou à responsabilidade dos meios que abriga: informar com precisão e atrelado aos fatos. Sem estudos clínicos que comprovem sua eficácia, os tratamentos experimentais acabaram ganhando o mesmo status de importância e espaço no noticiário, o que contribui para a confusão popular. Com sua bandeira libertária, o ND vem alimentando um ecossistema de desinformação que pode matar. Assim, ganha força o discurso anti-científico, o negacionismo e o curandeirismo.

O que é preciso dizer é que a postura do Grupo ND é tão verdadeira quanto o efeito salvador desses medicamentos. Sua argumentação é sofismática porque ninguém acredita que o conglomerado esteja mesmo preocupado com a liberdade de tratamento das pessoas. Se assim estivesse, teria incluído em seu editorial o uso medicinal de canabidiol, por exemplo. No fundo, o que o grupo empresarial defende é a redução de supostas interferências estatais na vida social. Em recente entrevista, o empresário Marcello Petrelli fez saber sua visão de Estado mínimo, e de como não enxerga seu conglomerado de mídia entre as elites que comandam Santa Catarina. Em um discurso ambíguo, reconhece os governos, mas tenta se desvencilhar deles, históricos aliados.

Igualmente contraditória é a postura que desdenha de cientistas e autoridades sanitárias, mas relega a médicos a prerrogativa de decidir a melhor prescrição à covid-19. Isto é, o Grupo ND só reconhece a autoridade que lhe convém, seja um Estado que não melindra seus negócios ou uma política pública de saúde errática e frágil.

Mas uma empresa de comunicação não pode marcar posição sobre esses temas? Claro que pode, é um direito opinar e debater temas importantes. Mas os interesses de grupos privados não podem prevalecer sobre os interesses coletivos e a lei. A saúde e a vida são de interesse de todos, e grupos de comunicação precisam dar especial atenção a assuntos delicados que podem causar mortes. Não é ético nem moralmente defensável que um conglomerado jornalístico desinforme, confunda e desoriente seu público, a pretexto de defender liberdade de escolha. A mídia precisa ter responsabilidade sobre o que divulga, pois isso pode afetar decisivamente a vida individual e em sociedade. Sem essa preocupação, o jornalismo abandona sua finalidade pública: servir a população, provendo a coletividade de informação confiável, verdadeira e de qualidade.

Se a opinião do Grupo ND ficasse restrita a um editorial, poderíamos conter melhor os estragos. Mas não foi um gesto isolado. Faz parte de uma questionável convicção e de um perigoso projeto editorial. Em 14 de agosto, o ND celebrou um remodelado projeto gráfico de seu jornal e as novas estratégias de “sinergia” entre suas redações. Relembrou as bandeiras que defendeu em catorze anos de atuação em Santa Catarina, e mais uma vez soltou o grito de independência de tratamento. No alto da página e ao longo do texto, reproduziu fotos de divulgação do sulfato de hidroxicloroquina…

*Professor da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do objETHOS. Escreveu e organizou 13 livros e tem mais de 120 capítulos de livros e artigos em periódicos científicos nacionais e internacionais. Como pesquisador, já desenvolveu projetos com financiamento da UNESCO, UOL, CNPq, EBC, ANDI e Fapesc.

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