Caso Johnny Depp e Amber Heard: a insignificância dos fatos

Como a manipulação de narrativas na mídia e nas redes sociais foi estratégica para inverter o papel da vítima e limpar a imagem de Depp

Por Gabriela Boechat

A louca, manipuladora e mentirosa contra o abusado, altruísta e inspirador. Essa foi a polarização que tomou conta da mídia desde 11 de abril, quando teve início o julgamento dos atores Johnny Depp e Amber Heard,  no estado norte-americano da Virgínia.  

Em 2016, o casal se divorciou após pouco mais de um ano de casamento e foi concedido a Heard uma medida protetiva de afastamento contra o ex-marido por violência doméstica. Dois anos depois, a atriz publicou um texto no jornal The Washington postque abordava a violência sofrida e se colocava como figura representante das sobreviventes de abuso doméstico. O artigo não citava o nome de Depp. Ainda assim, com a alegação de que foi altamente prejudicado pela publicação, o ator processou a ex-mulher por difamação e pediu uma indenização de 50 milhões dólares.

Foto: Steve Helber/AP/Shutterstock

Segundo seu testemunho, Depp foi retirado das franquias de filmes Piratas do Caribe, da Disney, e Animais Fantásticos, da Warner, logo após a publicação do jornal. Heard, por sua vez, apresentou sua própria ação, na qual pedia 100 milhões de dólares, alegando que foi ela quem sofreu difamação quando Depp argumentou que seus relatos de violência eram falsos.

O julgamento inteiro foi televisionado ao vivo pela rede Court TV. As provas, testemunhos e intimidade do ex-casal foram expostos para quem quisesse ver, o que garantiu que um processo extremamente complicado e pesado se tornasse uma espécie de grande reality show, com legiões de fãs que levantavam bandeiras para o time que escolheram torcer.   

Repercussão na mídia 

Enquanto corria, o caso se tornou um dos assuntos mais comentados nas redes sociais, e o favoritismo de Depp na opinião pública foi muito evidente, o que resultou em uma grande cadeia de linchamento virtual direcionada a Amber. No TikTok, a hashtag #JusticeforJohnnyDepp continha, até o dia 18 de junho, 20,8 bilhões de citações, enquanto#JusticeforAmberHeard possuía 97,9 milhões.

No Twitter, há milhares de posts com ameaças como “quem quer me acompanhar para matar Amber Heard brutalmente?”. Uma rede de ódio que atingiu seus objetivos: ameaçada de morte e diversas outras coisas, Heard só se desloca com escolta, o que levou a juíza responsável pelo caso a proibir o acesso de pessoas consideradas “ameaçadoras” ao tribunal, de acordo com o The New York Times

Cada palavra, expressão ou movimento de Heard durante o julgamento foi alvo de análise e ridicularização por pessoas na internet. Enquanto a atriz relatava cenas fortíssimas de violência física, verbal e sexual, usuários nas redes sociais e até mesmo programas renomados de televisão faziam piada da situação. O Saturday Night Live, famoso programa humorístico da TV norte-americana, por exemplo, reduziu o caso a “uma história que podemos assistir coletivamente e dizer ‘que bom que não sou eu’”.  

No final de maio, a revista norte-americana Vice denunciou que o jornal conservador, The Daily Wire, também dos Estados Unidos, “gastou dezenas de milhares de dólares promovendo notícias enganosas sobre o julgamento nas mídias sociais.” Segundo a revista, o dinheiro foi gasto em anúncios do Facebook e Instagram que promovem artigos com clara oposição a Heard e informações falsas.

Isso tudo, é claro, inflamado pela misoginia presente na nossa sociedade, que está pronta para atacar com todas as garras mulheres que decidem tomar atitudes perante a violência que sofrem, de forma a descredibilizá-las e ainda fazê-las passar por humilhação e revitimização. Para a psicanalista Suzana Schmidt Nolasco, em entrevista para O Globo, a misoginia que se viu em relação a Heard foi o retrato da aversão às mulheres que ousam quebrar a obediência feminina, porque segundo ela, “das mulheres, esperamos que amem e perdoem.”

A repercussão do caso e a forma com que ela foi feita apresenta efeitos graves e relevantes. Um caso delicado de violência doméstica destilado em curtos vídeos no TikTok, que são mais simples de consumir e podem facilmente estar fora de contexto, é problemático. Ao assistir alguns posts, as plataformas de redes sociais continuam a servir o usuário com um conteúdo similar, o que solidifica uma visão unilateral dos acontecimentos do julgamento² e reforça a polarização da opinião pública entre vilões e mocinhos.

Com um impulso de algoritmos virtuais complexos, o caso se tornou um grande jogo de narrativas, o que revelou a insignificância de fatos e da verdade. Isso foi intencional. Ambos os atores sabem que o tribunal da opinião pública é muito mais importante para suas vidas e carreiras do que o resultado do julgamento em si. Foi com isso que Johnny Depp e sua defesa jogaram.

A vitória do processo já era do ator independente do resultado, pois ele conseguiu conquistar de forma eficiente os jurados da opinião pública e pintar sua imagem de vítima injustiçada, restando a Heard a figura da louca, mentirosa e interesseira.  

E será que tudo isso não afeta o júri? Há diversos exemplos de casos judiciais que sofreram influência da opinião pública e da mídia, como o caso O.J. Simpson ou o movimento Free Britney. Não é novidade a capacidade que a comunicação possui de manipular informações, fazer sensacionalismo em cima de casos como este e influenciar no convencimento das pessoas — mesmo as que compõem o júri. Spoiler: foi exatamente o que aconteceu. 

O resultado 

No dia 1º de junho, a Juíza responsável pelo julgamento anunciou que Johnny Depp venceu o processo de difamação. O júri decidiu que Heard deverá indenizar o ator com 15 milhões de dólares. Depp, por sua vez, deve pagar à atriz dois milhões de dólares por danos compensatórios. 

Os fatos reiteram o absurdo da decisão, completamente enviesada. Como bem dito pelo advogado de Heard, Benjamin Rottenborn, em audiência: “se Amber sofreu abuso por parte de Depp pelo menos uma única vez, ela vence o caso. Eles estão tentando lhe fazer acreditar que Amber precisa ser perfeita para vencer.”  

Como já citado, o caso demostrou como a verdade pode ficar em segundo plano. Foi um jogo de atração da opinião pública, de quem conseguiria vender a melhor narrativa, ou fazê-la atingir mais pessoas por meio da comunicação e da mídia. A estratégia de defesa utilizada pela equipe do ator é também prova disso. Ele não se preocupou em comprovar que era inocente, mas sim em pintar a 

imagem de Amber como a abusiva e problemática na relação, sem credibilidade, doente, louca e agressiva. “Uma relação de abuso mútuo”, dizem a seu favor.  

Dessa forma, a jogada de Johnny foi tirar completamente o foco dos fatos, que são: Depp é alcoólatra e faz uso abusivo de drogas; em 1994, foi preso por destruir o quarto de hotel em que se hospedou com sua ex-namorada, Kate Moss; em 1998, Depp arremessou uma garrafa em outra ex, Ellen Barkin; em 2018, foi acusado de agressão a um funcionário em um set de filmagens. Durante o processo contra Amber Heard, ele admitiu em tribunal que escreveu mensagens ameaçadoras direcionadas a ela com o próprio sangue; disse que o corpo de Heard deveria estar se decompondo em um porta-malas; enviou mensagens a colegas onde dizia que deveria afogar e incendiar Amber, e fazia alusão a estupro; entre outras violências comprovadas

Além disso, em 2018, Depp também moveu um processo de difamação contra o jornal The Sun, que o chamou de “espancador de esposas”, e perdeu. O juíz responsável pelo caso concluiu que 12 dos 14 incidentes de abuso analisados foram provados, e, portanto, as palavras do The Sun eram “substancialmente verdadeiras”. 

E mesmo assim, Heard perdeu. Perdeu apesar das mensagens de texto vis em que Depp criava fantasias violentas de estupro e assassinato. Apesar de fotos e fotos de cortes e hematomas. Apesar das gravações de áudio em que Johnny abusava Amber verbalmente. Apesar da sua irmã, vários amigos, um maquiador e um conselheiro de casais atestando ver seus ferimentos. Heard, reconhecidamente, não era boa no banco durante o exame direto — chorava muito sem lágrimas e muitas vezes parecia atuar sua tristeza em vez de revivê-la. Por outro lado, se tivesse testemunhado com perfeita compostura, poderia ter sido criticada como calculada e insensível; se tivesse chorado um oceano seria vista como histérica.4 “Aparentemente, a postura da acusadora é, de alguma forma, uma incriminação mais contundente do que um vídeo do acusado destruindo uma cozinha”, analisa a jornalista Jessica Winter em matéria para o The New Yorker.

Em uma estratégia brilhante de manipulação de narrativas, na mídia e redes sociais, Johnny Depp saiu por cima, sendo reconhecido como representante de homens vítimas de mulheres loucas que os acusam falsamente de crimes, ou pior, como um homem vítima de violência doméstica, esvaziando por completo qualquer sentido que o termo algum dia já teve. Infelizmente, o cenário é extremamente grave para todas as mulheres.

Referências  

Perfil no TikTok que reúne contextualizações de vídeos contra Amber Heard que viralizaram, além de cenas no tribunal que são comprometedoras para Johnny Depp e não ganharam repercussão: tiktok.com/@justiceforamberheard  

https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2022/05/johnny-depp-x-amber-heard-em-seu-fim- julgamento-foi-espetaculo-perverso-de-misoginia.ghtml  

https://www.forbes.com/sites/petersuciu/2022/05/10/there-will-be-no-winner-as-social-media-continues-to-shape-the-reputations-of-johnny-depp-and-amber-heard/amp/ 

3 Perfil do Instagram: @meiosocial  

4 https://www.newyorker.com/culture/cultural-comment/the-depp-heard-verdict-is-chilling

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